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O QUADRIVIUM E A UNIVERSIDADE NO BRASIL (1969)
Antonio Alexandre Bispo
É curioso constatar quantos estudantes de Arquitetura se interessam por música e também quantos músicos jovens resolvem fazer o curso de Arquitetura. O caso mais conhecido é o de Chico Buarque de Holanda, que acabou por cedo abandonar o estudo da Arquitetura. Há muitos outros, porém. Na maioria das vezes, são jovens que realizaram estudos particularmente ou em escolas livres de música, poucos aqueles que saíram de conservatórios. Uma das razões dessa escolha reside certamente no fato de não haver ainda (1968) um curso de música na Universidade. Não querendo fazer um curso "federal" ou superior de música em conservatórios ou instituições semelhantes, conhecidas por um excessivo conservadorismo, e desejando realizar estudos universitários, optam pela Arquitetura. Será, porém, essa a única razão? Por que não fazem, por exemplo, o curso de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, onde também são ministrados esporadicamente cursos de História da Música, como o de História da Música no Brasil recentemente realizado? A importância da música no estudo da Arquitetura fica evidente nas aulas de História da Arte e Estética de Flávio Motta, Sérgio Ferro e Julio Katinsky, onde as projeções de slides de obras de arte são acompanhadas por música. Numa dessas aulas ficou impressionante claro como, por exemplo, a música de um Dave Brubeck pode contribuir para a percepção de novos aspectos das imagens apresentadas de obras da arquitetura contemporânea de São Paulo. A sensibilidade pela estética dessas obras e projetos ficou muito mais apurada pela música do que teria ficado por palavras. Supera-se, assim, o caráter extremamente verbalista que marca o estudo acadêmico da História da Arte. Do primeiro ano do curso de Arquitetura fazem parte, além do mais, entre outras, as disciplinas "Topografia e Elementos de Astronomia de Posição", "Geometria Descritiva e Aplicações" e "Cálculo Diferencial e Integral". Discute-se muito se a Arquitetura deve ter um cunho mais artístico ou mais técnico, se deve ficar mais próxima das Belas Artes ou da Engenharia Civil. Muitos professores salientam que o estudo da Arquitetura tem e deve ter os dois aspectos, ou melhor, que ela ocupa uma posição muito especial no âmbito da Universidade. Sobretudo o Professor de Topografia, Ferraz de Mesquita, salienta a importância de que a Arquitetura na Universidade seja também e sobretudo considerada como ciência. As disciplinas acima citadas lembram as três primeiras do Quadrivium do sistema universitário medieval, formado por Astronomia, Geometria, Aritmética e Música. Mais do que qualquer outra faculdade da universidade moderna, parece ser a de Arquitetura aquela que mais se aproxima do ideal clássico da formação superior do homem, advindo da Antiguidade e conservado até há poucos séculos atrás. O fundamento do sistema das sete artes liberais pode ser visto na distinção entre as disciplinas ligadas à Linguagem e aquelas relacionadas com a Matemática. Assim o Trivium era constituído pelas disciplinas Gramática, Retórica e Dialética (ou também Lógica), o Quadrivium por Astronomia, Geometria, Aritmética e Música. Deve-se, portanto, salientar que a Música não pertencia ao contexto das disciplinas ligadas à linguagem, mas sim àquelas de caráter matemático-astronômico. A Astronomia (também Astrologia) desempenhava neste sistema um papel central. Essa organização das disciplinas foi elucidada por numerosos pensadores que desempenharam um papel fundamental na formação cultural do Ocidente, entre eles Boécio e S. Agostinho. É totalmente impossível compreender os conceitos histórico-musicais, histórico-pedagógicos e histórico-científicos da Antiguidade e da Idade Média sem a consideração deste sistema das sete artes liberais. Ele constituia uma organização do saber em si coerente e adequada à visão do mundo e do homem de então. Ele está à base de todo o ensino medieval e também das concepções dos teóricos, filósofos e teólogos e, portanto, do Cristianismo como o recebemos nos Brasil. Ele é portanto indissociável da nossa cultura tradicional. Se quisermos compreender não só a História da Música, mas sim também as expressões tradicionais da nossa cultura, precisamos considerá-lo e dele partir. Foi dentro deste sistema e com base neste sistema que a música teve entrada nas universidades medievais. Tratava-se porém não de música prática, mas sim de música como ciência. Já no século XIV havia a cadeira de música, assim compreendida, na universidade portuguesa. Esse sistema da divisão das disciplinas do Trivium e do Quadrivium nos parece hoje à primeira vista estranho e inexplicável. Estamos acostumados a colocar a música antes na proximidade da fala e da linguagem. Também estamos acostumados a considerar a música juntamente com as artes plásticas, e nos parece incompreensível ou forçado uní-la à matemática ou à astronomia. Com isso, porém, não estamos mais em condições de entender as antigas definições de música, as concepções ligadas à sua divisão, às suas origens, à sua ação sobre o homem e os animais, enfim, não estamos em condições de entender toda a teoria e a filosofia da música até o Renascimento e o Barroco, de analisar as obras e as considerá-las estéticamente de forma adequada. Poderíamos dizer que este sistema das sete artes liberais está superado. Antes porém de criticá-lo, precisaríamos compreendê-lo e reconhecer que as nossas idéias a respeito das artes são resultados de correntes de pensamento muito recentes, dos últimos séculos. De forma alguma deve ser visto como ponto pacífico que a música seja "irmã" de artes como a escultura, a pintura, a poesia e o teatro. Como se entende a divisão do Quadrivium, ao qual a música pertencia? A resposta é fácil de ser dada: através das concepções ligadas com os elementos da matéria. Como todos sabemos, os fundamentos da matéria foram vistos nos elementos Fogo, Terra, Ar e Água. A esses elementos vinculavam-se todos os conceitos do conjunto global e íntegro do conhecimento herdado da Antiguidade. Eles se relacionavam com a tipologia do Homem através das correspondências com os signos do Zodíaco. Eles se relacionavam também com os membros do corpo e os órgãos dos sentidos. De acordo com tais correspondências, o Fogo, que irradia não só calor mas também luz, é relacionado com a visão, a Terra, que é o elemento seco, material, corporal por excelência, com o tacto, o Ar, elemento quase incorpóreo e através do qual entendemos mensagens e o sentido daquilo que nos é dito, com os ouvidos, e a Água, elemento que pode tanto ocorrer em estado de vapor como líquido, com os órgãos que respectivamente percebem os odores e humidecem os alimentos e, assim, com o olfato e o paladar. Desta forma, compreende-se a formação do Quadrivium: a Astronomia relaciona-se com a visão, pois a observação dos céus iluminados pelas estrelas se faz atraves dos olhos; a Geometria se relaciona com a Terra, o que é até terminologicamente óbvio; a Aritmética, na abstração do cálculo, com o Ar, e a Música, por fim, com a água, o elemento que flui como a própria música. Esse vínculo da Música com a água determinou até mesmo a definição da matéria e é essencial para a compreensão de todo o edifício de concepções herdados do passado e ainda em parte vigentes na nossa cultura. Sendo o elemento água na sua correspondência com os sentidos relacionado com o olfato e o paladar, ou seja, com a percepção daquilo que tem bom ou mau odor, do que é agradável ou não, do que faz bem ou não, do que deve ser assimilado ou rejeitado, é ela por excelência relacionada com a ciência do gosto, ou seja com a Estética. Assim, a Estética é, nesse sistema de concepções, essencialmente vinculada à Música. No sistema universitário atual no Brasil, é, portanto, na Arquitetura, que além das disciplinas citadas também inclui a Estética, a que mais se aproxima das concepções universalistas e integrais da tradição do pensamento ocidental e da qual faz parte a Música. A introdução da Música, ou melhor da Ciência da Música no sistema universitário deveria, portanto, seguir o exemplo da Arquitetura, considerando-se uma disciplina em si, com conceitos, tradições e metodologia próprias, não totalmente integrável no esquema atual da divisão das disciplinas universitárias. No sistema atual, o mais adequado seria talvez que fosse incluida na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. De forma alguma, porém, parece ser defensável a sua integração numa área denominada de "Artes e Comunicações". Essa denominação é totalmente inadequada, pela própria história da disciplina e pelas conotações que traz. A Música é imediatamente colocada ao lado das demais artes, e o aspecto prático assume especial relêvo. Se só assim fosse, ou seja, se se criasse uma escola de música prática na universidade, ainda poder-se-ia aceitar, de acordo com concepções norte-americanas do ideal de um elo mais estreito entre a prática e a ciência. O grande perigo que daí resulta é que a sua integração na universidade leve logo a projetos de cunho musicológico, uma vez que não há um Instituto realmente de Ciência da Música, ou seja de Musicologia, independente ou ligado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Salientamos que a Arquitetura também não está integrada a nenhuma "Escola de Comunicações e Artes". A Musicologia estaria aqui situada num ambiente totalmente inadequado, impróprio para o seu desenvolvimento. A inclusão da música nas Escolas de Artes e Comunicações é portanto uma iniciativa que pode comprometer o futuro da Musicologia no Brasil. Os músicos que tanto se empenham na criação de tal instituição, alguns sem formação musical regular de acordo com a legislação, não realizam, na verdade, atos responsáveis para o vir-a-ser de nossa disciplina. Aliás, da mesma forma, ou talvez pior ainda, seria a criação de Departamentos de Musicologia em antigos conservatórios que passaram a ser integrados em universidades, como é o que parece acontecer em certos estados brasileiros. Logo teríamos diretoras de conservatórios, formadas em piano ou canto, agora professoras universitárias, organizando encontros musicológicos e simpósios, lançando publicações etc. É claro que poderia e deveria haver matérias de cunho musicológico nos conservatórios de nível superior, estes, porém, não deveriam ser integrados na Universidade. Os cursos de cunho prático, artístico e tecnológico deveriam continuar a fazer parte de liceus de Artes e Ofícios, de conservatórios, de escolas de Belas Artes e politécnicas. Ainda que compreendidas como escolas de nível superior, não deveriam fazer parte da Universidade. Segundo estas convicções, somente a Musicologia, não a formação de instrumentistas e cantores, tem direito de fazer parte do sistema universitário, fundamentando-se para isso em tradição secular. Isto não quer dizer, porém, que a Musicologia seja apenas teórica e teoretizante. Dela faz parte, de forma essencial, o estudo do complexo teoria/prática, e a esta última é que deve servir, como orientadora porém, não como dela empregada.
Conferência proferida em assembléia da Sociedade Nova Difusão Musical, em 1968. Originado em discussões durante trabalhos em grupo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Serviu como base para aulas de Estética e História da Música na Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo, em 1972. Publicado em BrasilEuropa & Musicologia, ed. H. Hülskath. Köln: ISMPS e.V. 1999,25-28. ©Todos os direitos reservados
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