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UNIVERSAL/NACIONAL NA PESQUISA E NA INTERPRETAÇÃO: O CASO DO CATERETÊ (1966)
Antonio Alexandre Bispo
Cateretê! Quando se ouve pela primeira vez essa palavra, que em si já soa tão ritmada, não se sabe muito bem o que ela quer dizer. Tem-se uma idéia muito vaga do seu significado e imaginamos, de início, uma espécie de batuque. Quando queremos então executar bem uma peça que traz esse título, tal como o Caterêtê de O. Lorenzo Fernandez (1897-1948), então temos a necessidade de saber um pouco mais a seu respeito, o que nos leva à procura de informações nos livros de folclore e história da música. Foi o que fiz. No decorrer desse estudo, porém, ocorreram-me algumas idéias mais gerais que gostaria de aqui expor. Para a minha apresentação no Teatro Municipal de São Paulo tinha sido previsto o Allegro brillant A-Dur op. 92 de F. Mendelssohn-Bartholdy, composto em 1841, tendo até mesmo já realizado ensaios com a orquestra. Agora, decidiu-se que executarei "simplesmente" o Cateretê de Lorenzo Fernandez, que é a terceira peça da sua segunda suite sobre temas originais, precedido por um ponteio e uma moda e que traz o subtítulo de "dança" (Suite Brasileña/ Brazilian Suite) Fico muito orgulhoso de poder representar a música brasileira no programa, e isso não apenas em obediência a uma exigência do regulamento que prevê a inclusão de uma peça de autor nacional. Como todos nós sabemos, o nosso conservatório traz o nome de A. Carlos Gomes e procede, em parte, de uma entidade formada por músicos italianos de São Paulo, a Associação Beneficiente Benedetto Marcello. Ora, todos nós também sabemos o quanto Mário de Andrade combateu o italianismo preponderante na vida musical de São Paulo do seu tempo e quanto apregoou uma linguagem nacional na música. Como formandos deste conservatório e alunos de professores que são, na sua maioria, italianos ou descendentes de italianos, somos quase que descendentes do rol dos combatidos. Creio, porém, que a discussão do passado ainda não perdeu a sua atualidade e que deveria ser novamente encetada, apesar da autoridade que goza Mário de Andrade. Ela diz respeito no fundo, à importantíssima questão do universalismo ou do nacionalismo na música. Todos nós estudamos esse ponto nas aulas de História da Música com base nos capítulos que foram incluídos na História Universal da Música de Kurt Pahlen. Tentei aprofundar-me no assunto através de publicações de outros autores. ( ...) A questão do nacionalismo musical é complexa e deve ser vista sob diversos prismas. Para os seus defensores mais extremados, não se trata apenas de incluir nos programas um compositor que nasceu ou viveu no Brasil. Isso apenas seria uma questão de solidariedade e preencheria uma exigência legal. Um Carlos Gomes, um Henrique Oswald e muitos outros não apresentariam, para eles, características nacionais nas suas músicas. Aqui temos, porém, um problema muito difícil de ser resolvido. Quais são as características nacionais na música? Entramos aqui no campo de estudos do Folclore. Como porém o Prof. Edgard Arantes bem demostrou, uma coisa é estudar o folclore de forma neutra, outra coisa é usá-lo para fins nacionalistas. Quero exemplificar esse fato a partir do Cateretê. A respeito do Cateretê no nosso folclore consultamos, entre outros, trabalhos de Dalmo Belfort de Mattos, publicados na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo (vol. 71, outubro de 1940) e no Boletim Latino-Americano de Música, de 1946. O Dicionário de Folclore de Luís da Câmara Cascudo, publicado em segunda edição, em 1959 (1954), traz uma bibliografia a respeito. Nesses trabalhos, aprende-se que o Cateretê é praticado no Interior de São Paulo, no Sul de Minas, no Triângulo Mineiro, no Altiplano de Goiás, ao norte até o São Francisco, a oeste até a bacia do Rio das Mortes, a leste até o rio Pomba, ao Sul até Jacarezinho e Cambará. Muitos supõem ser ele de origem indígena, tendo sido utilizado pelos jesuítas na sua catequese, pois faz parte das festas de Santa Cruz, do Espírito Santo, de São Gonçalo e floresceu em todos os antigos aldeamentos jesuíticos, tais como Carapicuíba, Itanhaém e Peruíbe. Segundo esse autor, ele foi levado pelas bandeiras para o Interior. A denominação "cateretê" é corrente em Sorocaba, São Bernardo, Sapezal, Assis, Presidente Epitácio, desde Mogí das Cruzes a São José do Barreiro; em Amparo, Franca e Novo Horizonte surge o nome "catira"; em Tatuí é "bate pé", em Mogí das Cruzes chama-se "bate palma". Uma influência africanizante poderia ser observada sobretudo no Rio de Janeiro. O Cateretê fluminense difere assim do genuíno catira paulista, do Sul mineiro e de Goiás. Quanto ao instrumentário, no Rio se utilizam duas ou três violas e dois ou três adufes, em Minas três violas (ou violão), em São Paulo o "pinho" ou viola com 5 cordas. Quanto à melodia, observa-se o canto a duas vozes, dançando-se após o canto, quando a viola continua a tocar. Segundo Luís Heitor Correa de Azevedo, que estudou a catira em Goiás, em 1944, não é raro que as vozes se desdobrem, aparecendo acordes de três sons. Geralmente há paralelismo, mas às vezes abandonam-se as terças inferiores, havendo movimentação oblíqua e até mesmo cruzamento de vozes. A primeira voz é o " canto firme, a segunda voz é chamada de "Filisbina", ou seja, é incidental. Em todo o caso, a música parece ser secundária no Cateretê. O principal é a letra, o sapateado e o palmeado. O Cateretê, portanto, segundo Belfort de Mattos, não tem origem africana, o que foi afirmado por alguns autores. Tanto com relação ao tema quanto à música não apresenta características propriamente de música de negros. ( ...) A área do Cateretê paulista é a de Carapicuíba, a da zona rural de Itú e Pirapora, ou seja, a área que corresponde historicamente à fixação da gente do Planalto. Do ponto de vista etnográfico, corresponde à zona de dispersão do caboclo meridional, a assim-chamada área mameluca ou planaltina. ( ...) Vemos, portanto, como a pesquisa é necessária para a interpretação, pois senão iriamos executar o Cateretê de Lorenzo Fernandez como se fosse uma percussão africana. Na verdade, porém, o ritmado da música sugere não o toque de tambores, mas sim o sapatear e o palmear. Não seria correto se executássemos essa peça como um batuque ou sugerindo um estado de êxtase como se fosse música de uma sessão de macumba. Rossini Tavares de Lima abre o capítulo "Cateretê ou Catira" do seu livro Folclore de São Paulo (Melodia e Rítmo), publicado em São Paulo, em 1954, com a seguinte frase: "Segundo Couto de Magalhães, o Cateretê foi uma das danças do nosso índio que o jesuíta adotou em sua obra de catequese. E apesar de não se possuir documentação sobre o fato, hoje ninguém o contesta". Alceu Maynard Araújo, no seu Documentário Folclórico Paulista, de 1952, e no volume II do seu Folclore Nacional (Danças, Recreação, Música), edição de 1967, diz mais genericamente que era dança usada pelos catequistas. Ora, os pesquisadores que acham que o Cateretê é sobretudo indígena ou africano me desculpem, mas na minha família sempre se conta que os tios-avós, que vieram de Portugal, costumavam sapatear em cima de mesas e outros assoalhados. A mim me parece ser esse bate-pé claramente de origem ibérica. Já basta notar a posição do corpo com o aprumo do dorso e os gestos dos sapateadores para vermos que pouco tem de indígena ou de africano. Muito provavelmente não foram os jesuítas no caso que aproveitaram as danças dos índios, mas sim os índios e os caboclos que aprenderam a dançar dessa forma com os portugueses. Se esse for o fato, qual seria a característica "nacional" propriamente dita do Cateretê de Lorenzo Fernandez? Ele se utiliza de uma dança sapateada do povo, é verdade, mas essa dança veio de outro lugar. Ela é tão universal como qualquer outro gênero ou estilo apropriado por compositores que não se inspiraram pelo folclore. Como vemos, precisamos separar as coisas. Ser ou não ser nacionalista é uma questão de política. Na pesquisa e na interpretação, porém, não convém tomarmos posições que nos podem conduzir a êrros. Eu, da minha parte, vou tocar o Cateretê de Lorenzo Fernandez pensando na proveniência familiar ibérica do seu autor e que utilizou uma forma de dançar ibérica, tornada tradicional no Brasil, julgando talvez ser indígena ou africana...
Palavras proferida em reunião de encerramento do Conservatório Musical Carlos Gomes, dezembro de 1966 (Excertos}. Publicado em partes em BrasilEuropa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: I.S.M.P.S. e.V. 1999, 89-91. ©Todos os direitos reservados
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