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LEITURA E ANÁLISE AMBIENTAL DA URBE ENSAIO DE MÉTODO INTERDISCIPLINAR (1970)
Antonio Alexandre Bispo
No estudo da Arquitetura dá-se especial atenção às questões relativas à "leitura" da cidade. Na realidade, já Victor Hugo disse que "a cidade é uma escrita e que o usuário da cidade, que somos todos nós, é uma espécie de leitor que, conforme seus deslocamentos, toma fragmentos do enunciado para, no íntimo, atualizá-los". Se a cidade é uma espécie de leitura, então poderíamos partir do pressuposto que seria possível analisá-la como se fosse um texto, ou melhor, uma partitura. Esta constatação nos abre diferentes possibilidades de procedermos sistematicamente, através da aplicação de conceitos, critérios e técnicas da linguagem ou da música. Poderíamos tentar analisar a realidade urbanística, por exemplo, gramaticalmente, sintáticamente ou morfologicamente. Como é que poderíamos analisála empregando conceitos e procedimentos de natureza musical? De fato, se na música usamos de termos e conceitos emprestados da arquitetura, falando de estruturas, intervalos estruturais, tensões, pontos de apoio, repousos, textura, construção, materiais construtivos, etc., então também deveríamos poder usar na análise urbana de conceitos musicais e nela empregar conceitos tais como melodia, modulação, harmonia, contraponto, instrumentação e orquestração. Não se trata aqui de uso apenas literário desses termos, mas sim de possíveis caminhos metodológicos de análise, baseados numa afinidade existente entre a música e a arquitetura, como a procuramos estudar no curso de Estética. Vamos tentar elucidar melhor este procedimento. Todos nós experimentamos as transformações causadas recentemente no estudo da harmonia com a adoção da assim-chamada "harmonia funcional", difundida no Brasil sobretudo por H.J.Koellreutter e seus discípulos, por exemplo por Roberto Schnorrenberg. Não se trata, aqui, naturalmente, de uma outra harmonia, mas sim de um outro procedimento no pensar e no analisar o fenômeno da harmonia no nosso sistema tonal e que é um fenômeno de natureza histórica ou histórico-cultural. Já não procedemos por "graus", mas sim funcionalmente. Ora, esse método foi um dos vários métodos desenvolvidos nos séculos XVIII, XIX e XX para uma melhor compreensão do acontecer harmônico, tornado necessário sobretudo pela crescente complexidade da linguagem musical. Poderíamos citar aqui sobretudo o nome de J.-Ph. Rameau e, de época posterior, o do grande teórico Hugo Riemann. Como sabemos, partimos básicamente das funções de Tônica, Dominante e Sub-Dominante, uma redução muito útil na compreensão do acontecer harmônico, e às quais então relacionamos as funções relativas, "paralelas" ou "anti-paralelas", as Dominantes secundárias, etc. Vamos aqui tentar, como exemplo, aplicar esses conceitos ao exame daquilo que constatamos, ou "lemos" na cidade. Poderíamos dizer que certos edifícios, seja pela sua altura, pelas suas dimensões, pelo seu volume e pêso dominam o contexto envolvente, exercendo, portanto, uma função de dominância. Ora, na terminologia musical, a dominante representa a tensão, o que tende a se resolver, procurando o repouso, o que nem sempre acontece de imediato. Também no tecido urbano poderíamos então analisar esses jogos de tensão dominantal de certos edifícios e a sua resolução em edifícios menores, praças e no ambiente envolvente. Na leitura da cidade, as praças e os grandes parques, as áreas livres, enfim, parecem representar os pontos de repouso por excelência e, portanto, o que chamaríamos de tônicas do tecido urbano. Mais difícil é identificarmos na cidade aquilo que poderíamos denominar de Sub-Dominante, a outra grande coluna da harmonia. Talvez um dos caminhos para identificá-la seria o da constatação, em analogia com a música, de cadências na urbe. Assim, já pela altura, pelo volume ou pelas dimensões de edifícios poderíamos perceber em certos casos o encadeamento de T S D T. O reconhecimento da Dominante no tecido urbano implica no reconhecimento da nota sensível, o que nos leva também, por assim dizer, à distinção de uma tonalidade urbana. Não precisamos dizer que inúmeras dissonâncias tornam a análise urbana extremamente complexa. Já tentamos desenvolver esse procedimento, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, em trabalho dedicado à Análise Ambiental. Tentamos também distinguir funções relativas, dominantes secundárias, alterações, modulações, etc. Não vamos aqui entrar em pormenores teóricos dessa tentativa, mas sim observar os mapas criados a partir do levantamento viário, topográfico e de perfil arquitetônico assim analisados. [...] A partir dessa análise "harmônico-funcional" do tecido urbano, poderíamos estudar, por exemplo, a estruturação "melódica" da cidade. Como sabemos, a "melodia" do perfil da metrópole foi uma idéia muito utilizada no Canto Orfeônico, baseada na "melodia da montanha", por ex. de H. Villa Lobos ou de J. Julião. A respeito dispomos de dados em alguns livros de Canto Orfeônico. O gráfico desse contorno melódico esteve sempre exposto no antigo Conservatório de Canto Orfeônico no edifício da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Não poucos tentaram primeiramente criar um esboço de cidade para, depois, por meio de gráficos, dele retirar a melodia para ser harmonizada. O perfil dos arranha-céus de Nova Iorque já motivou obras musicais e o mesmo poderíamos imaginar para o Rio de Janeiro com a sua silhueta tão característica. Na análise da cidade, porém, fazemos o inverso. Partimos do contorno existente ou visto a partir de um determinado ponto-de-vista e analisamos, com base nesta melodia, a "composição" da cidade. Esse contorno melódico pode ser analisado formalmente, nele distinguindo-se períodos, frases, semi-frases, motivos, etc., ou seja analisando-o segundo a sua regularidade ou irregularidade de perfil. Da mesma forma poderíamos tentar detectar um desenvolvimento das vozes e a sua relação entre si, por assim dizer um "contraponto" interno ao tecido urbano, visualizando linhas e suas movimentações em sentido paralelo, contrário ou oblíquo. Por outro lado, poderíamos entender a urbe como uma obra orquestrada e, assim, poderíamos tentar analisar os instrumentos utilizados, a "cor" tímbrica que emprestam à cidade, etc. Nem todas as cidades ou bairros da cidade são frutos de um desenvolvimento tal que pudessem ser considerados como harmoniosos. Pelo contrário! Em geral, podemos comparar a cidade com uma peça musical que nos parece à primeira vez incompreensível e caótica. Se a análise de uma aldeia indígena e aquela da música indígena podem ser, com reservas, comparadas entre si, a análise de uma cidade como a nossa parece ser muito mais comparável com a análise de um aglomerado musical aleatório. Nela há, no entanto, trechos e partes "compostas", embora criadas sob diferentes critérios , aptas a serem mais facilmente analisadas. Há trechos, porém, e temos aqui a maior parte da cidade, que sofreram modificações importantes ou que nasceram e cresceram a esmo, de forma que é como se tivéssemos uma complexa superposição e mixtura de peças musicais executadas ao mesmo tempo por vários conjuntos ou aparelhos sonoros. Poderíamos também pensar em politonalidades, superposições de harmonias, etc. Como porém sabemos, muitas vezes tais superposições e misturas criam novas realidades sonoras, dando origem às vezes a uma outra tonalidade ou harmonia. Assim, poderíamos tentar decifrar, também na urbe, uma harmonia resultante, com todas as suas consequências. Como podemos perceber, tentar levar adiante esse método é um procedimento altamente complexo, mas que mereceria ser tentado sistemáticamente, uma vez que as analogias são muitas e profundas. De resto, se usamos métodos e conceitos emprestados da organização espacial na análise da organização temporal, então deveríamos também tentar o inverso. Trata-se nada menos de uma questão de reconhecimento da harmonia da urbe! Somos obrigados a constatar que a análise arquitetônica está ainda numa fase muito mais incipiente e primária do que a musical. É até mesmo uma disciplina que falta no estudo da Arquitetura e do Urbanismo. Ela poderia vir a ser muito útil na compreensão do fato urbano e no seu domínio e manipulação criadora, visando a melhoria da qualidade de vida, uma vez que diz respeito à harmonia da cidade e dos seus habitantes.
Trechos de aulas de curso optativo da disciplina "Fundamentos da Expressão e das Comunicações humanas" da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo. As aulas se baseram no trabalho "Análise Ambiental" realizado e apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1969/70. Publicado parcialmente em BrasilEuropa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: ISMPS e.V. 1999, 57-74. ©Todos os direitos reservados
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