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EDIFÍCIOS E ESPAÇOS DE SIGNIFICADO RELIGIOSO DA ANTIGA URBE (1970)
Antonio Alexandre Bispo Em cursos de Arquitetura religiosa no Brasil trata-se do problema da dificuldade de consideração histórico-artística das igrejas da cidade de São Paulo. Com raras exceções, os nossos templos sofreram sucessivas modificações, restaurações infelizes e deturpações que os prejudicaram arquitetonicamente. Várias das antigas igrejas foram demolidas, o que atingiu crucialmente a configuração urbana original. Assim, a demolição da Igreja do Rosário privou o Triângulo de um de seus marcos religiosos mais significativos. O mesmo poderia ser dito da demolição da Igreja de São Pedro, da dos Remédios e, sobretudo, da antiga Sé. Mesmo assim, porém, restam algumas igrejas que remontam às origens da cidade ou a um passado já bastante remoto e que são de grande significado na pontuação e caracterização espiritual e cultural da cidade. A consideração das igrejas paulistanas deveria ser menos guiada por critérios puristas de autenticidade, afastando de princípio toda a idéia de recuperações historicistas, mas antes e sobretudo pelo seu significado na memória paulistana. As irmandades são as principais guardiãs dessa memória, pois nelas se reunem os fiéis que conhecem o passado das respectivas igrejas, pelo menos o mais próximo. O significado desses edifícios é determinado, por um lado, pelas características particulares espirituais da devoção aos oragos e aos santos cultuados e, por outro, pelo histórico de própria comunidade. A música é tanto vinculada com as características espirituais particulares de cada templo, como com a vida da comunidade. Assim, cada irmandade possuia as suas próprias ladainhas, novenas, missas solenes, que as distinguiam de outras e as tornavam conhecidas. A música foi um fator de importância na identificação dos fiéis com as suas respectivas comunidades. Ao analisar a arquitetura e os espaços de significado religioso na urbe, não podemos, portanto, deixar de considerar a música. Vamos considerar agora alguns edifícios sacros já desaparecidos, mas cuja memória permanece ainda viva nos fiéis que continuam a freqüentar as novas igrejas que os substituiram. A antiga Sé Os serviços religiosos mais brilhantes foram, sem dúvida, os da Sé. Não podemos esquecer, porém, que à medida que avançamos no tempo, esse brilho passou a caracterizar sobretudo as cerimônias de igrejas mantidas por irmandades, tais como a do Carmo, e as das irmandades de homens de cor, tais como a do Rosário e a dos Remédios. Levantamos inclusive a hipótese de uma especial importância musical de tais templos em épocas anteriores, que teria sido devidamente "esquecida" pela imprensa ou pelas crônicas, por constituirem centros religiosos de grupos sociais mais desfavorecidos. Aliás, seria impossível conceber o fausto da vida musical da Igreja dos Remédios ou da do Rosário dos Homens Pretos em fins do século XIX sem uma longa história anterior de cultivo musical. A prática de música coro-orquestral e solística nessas igrejas consolidou-se em longa tradição. Com a sucessiva reforma da música nas igrejas, a partir da Sé, essas irmandades restaram como os últimos redutos de um "velho estilo" de prática musical e de uma religiosidade de cunho tradicional em São Paulo, o que quase atinge os nossos dias. A velha matriz possuía boa acústica no dizer dos informantes, hoje nonagenários. Tinha um coro não muito amplo mas que comportava, de forma mais cômoda do que na maioria das igrejas da cidade, uma orquestra de mais de 20 elementos, além da percussão (pancadaria), que na Sé desempenhou importante papel. De suas três amplas janelas, os cantores debruçavam-se nos dias de festas públicas e procissões no Largo da Sé. Delas era possível ver todo o casario fronteiriço, bem como a igreja de São Pedro da Pedra. Subia-se para o coro através de uma porta lateral à igreja, onde nos dias de festa constituiam-se rodinhas de cantores e músicos. No coro havia também um órgão. A prática musical estudada foi mantida na Sé até 1908, tempo de D. Duarte Leopoldo e Silva. Nessa época, processou-se a reforma sob a direção do Maestro Furio Franceschini, de acordo com as novas determinações e concepções de música sacra. Esse maestro, segundo as suas próprias palavras, assumiu a liderança de um movimento "saneador" das igrejas de São Paulo, liderado pela matriz. Nesta época participava do coro, entre muitos outros, Carlos Cruz, um músico de importância especial entre a população de cor da capital. Conta-nos o Mtro. Franceschini a respeito do seu primeiro contacto com a música da Sé, que deveria assumir: "O Arcebispo D. Duarte Leopoldo e Silva, que também era musicista, disse-me: Estamos na Semana Santa, vá até a Catedral para ter uma idéia do que está acontecendo, pois no próximo ano você vai tomar conta. Entrei na Sé na hora do Credo - o soprano cantava "et passus", o contralto respondia, depois o tenor, o baixo, e finalmente tocava o bumbo. No 'resurexit' toda a orquestra entrava com grande estrondo". Não foi fácil, entretanto, a substituição do repertório. O próprio maestro reconhece que foi uma grande batalha, apenas vencida com a ajuda do arcebispo. Ainda em 1910, com a morte do Presidente Afonso Pena, o vigário pediu orquestra na missa de trigésimo dia, pois as autoridades assim o exigiram. Franceschini orquestrou então uma missa de Perosi para vozes masculinas. Foi a primeira instrumentação de uma missa do autor que temos notícia, prática aliás que se vai alastrando por todo o interior, inclusive fazendo-a adquirir características do antigo estilo orquestral. Basta verificar as instrumentações de Juca Bolinho na região de Pirapora do Bom Jesus. A instrumentação de F. Franceschini, para duas orquestras de cordas, foi trabalho que durou um mês. Tomavam parte na orquestra, entre outros, músicos italianos de boa formação, tais como o violinista Torquato Amore e Alfredo Belardi, o tenor Cônego Chipullo e o baixo Tertuliani. Outra missa orquestrada foi ainda realizada por ocasião da morte da Rainha Margarida da Itália. A Igreja de São Pedro A Irmandade de São Pedro atuava na Sé, durante parte do século XVIII. A edificação do templo no próprio Largo da Sé (onde atualmente situa-se a Caixa Econômica Estadual) teve o seu início com os Padres Angelo Siqueira e Francisco Alves Calheiros, naturais de São Paulo, "com provisão do bispo D. Fr. Antonio Guadelupe, datada de 7 de novembro de 1740, e escritura de dote em bens de raiz, datada a 08 de maio de 1745, pelo dito padre Angelo Siqueira." (Manuel Eufrásio de Azevedo Marques segundo documento do cartório episcopal de São Paulo, maços e documentos e livro do tombo, 241) A igreja era de construção sólida, imponente com as suas duas torres, saliente do alinhamento das casas. Sofreu algumas reformas, salientando-se no decorrer da segunda metade do século XIX a substituição das janelas de guilhotina, semelhantes às da Sé, por janelas com bandeira, semelhantes às da atual Boa Morte. Da sua vida musical, sabemos que nela atuaram Veríssimo Glória e Carlos Cruz no início do século atual. Carlos Cruz alí regeu quando a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos foi transferida para essa igreja, em 1904, época da demolição do templo próprio no Largo do Rosário. Já então, as atividades da Irmandade tinham perdido grande parte do antigo esplendor. Documento que adquire grande valor pela sua antiguidade e por constituir o único testemunho levantado do seu passado musical é o Gradual para as "Festas de São Pedro e São Paulo", de origem provavelmente setecentista, de autor desconhecido e que foi executado anualmente nesta igreja, segundo informações dos herdeiros de Veríssimo Glória. O copista dos manuscritos assina "Esp. Santo". [...] A Igreja da Misericórdia A Irmandade da Misericórdia é muito antiga, fundada em 26 de agosto de 1680, como lemos nas "Reminiscências Paulistanas" (op.cit. pág. 85). A sua igreja, segundo alguns autores, já existia em 1703. Esse templo, que assumiu particular importância no século XVIII, chegou a abrigar, inclusive, o Santíssimo Sacramento da Matriz, em 1741, por se achar em ruínas a Sé. Este foi um fato motivador de folclore, expresso no dito popular "caber a Sé na Misericórdia". Como Manuel Eufrásio de Azevedo Marques relata, o Rev. Martins Lourenço de Carvalho, alegando achar-se em ruínas a matriz de que ele era pároco, requereu ao presidente, irmão José da Silva Ferrão, a transferência do Santíssimo Sacramento da sua freguesia para a igreja da Misericórdia, por ser esta mais adequada, situada em melhor localidade e mais cômoda para a boa administração aos necessitados.(op.cit. pág. 249) A Igreja da Misericórdia foi demolida em 1888. A sua festa mais importante, a de Santa Isabel, orago do templo, comemorava-se a dois de julho, com ladainhas cantadas, pregações e missa solene. Reunia grande número de portugueses e descendentes de tradicionais famílias luso-brasileiras. Na segunda metade do século XIX, nela atuou, como organista, o jovem Henrique Oswald, mais tarde importante figura da nossa História da Música. [...] A Igreja dos Remédios Situada no centro da atual Praça João Mendes, essa igreja foi demolida há algumas décadas, durante a administração Prestes Maia. Encontra-se hoje na Aclimação, onde alguns de seus velhos fiéis, ainda ligados à antiga tradição desta igreja e um tanto deslocados no ambiente social daquele bairro, a visitam nas datas mais festivas. Nascida de uma primitiva capela edificada na primeira metade do século XVIII (1724), como voto pela liberdade do Coronel Sebastião Fernandes do Rego, que encontrava-se preso, foi fundada sob a invocação de São Vicente, segundo Manuel Eufrásio de Azevedo Marques. Este autor, nos seus "Apontamentos" diz que no tempo do Bispo D. Bernardo Rodrigues Nogueira, em 1747, estando a igreja em abandono, encarregou-se dela a Irmandade da Misericórdia. Sob a invocação de Nossa Senhora dos Remédios, foi posteriormente reedificada, ficando a cargo da mesma Irmandade. A Confraria de Nossa Senhora dos Remédios teve o seu compromisso aprovado por lei provincial de 9 de fevereiro de 1836. O que pude levantar a respeito do passado musical desta igreja, que deve ter sido brilhante, prende-se às atividades de seu último mestre, o mulato Veríssimo Glória. Este músico, que dirigiu a música na Igreja dos Remédios por muitas décadas, herdou, por assim dizer, parte da tradição musical oitocentista do templo. Uma composição muito executada na Igreja dos Remédios, fato demonstrado pelo desgaste do papel, foi a Missa de Canepa, uma partitura copiada no Rio de Janeiro a 28 de março de 1874. Essa obra era até mesmo conhecida como "Missa de Glória", provavelmente resultado da confusão entre "de" e "por". Pode ser, também, que esta denominação seja originada pelo grandioso Gloria dessa composição. Outra obra executada nesta igreja durante as grandes festas do século XIX e início do XX foi a "Messe Solennelle à quatre voix, avec accompagnement dorchestre ou dorgue par le Frère Léonce, du Pensionnat de Passy", em edição francesa de 1855. Contém, inclusive, indicações feitas a lápis vermelho da linha de regência e páginas dobradas para a omissão de certas partes, como, por exemplo, a do "Dona nobis pacem". O que tornou, entretanto, a Igreja dos Remédios conhecida musicalmente foram as suas Semanas Santas, especialmente faustosas até os primeiros anos da década de quarenta do nosso século. Alí executava-se a Semana Santa de Vicente Procópio, música teatral por excelência, "uma verdadeira ópera" no dizer de antigos fiéis. O próprio Vicente Procópio, nas suas andanças pela capital, parece que chegou a dirigir a orquestra do templo no último quartel do século. Também temos notícia da execução de peças de Manoel dos Passos, especialmente do seu "Libera me", ainda na memória de cantores mais idosos. Entre os músicos que participaram da orquestra e do coro, no início do século atual, conseguimos levantar os nomes de Carlos Cruz, Antenor Vaz, de membros da família Leal, e de uma senhora muito ativa, Dna. Hermínia, cujo sobrenome não pudemos ainda identificar. O coro e a orquestra eram formados predominantemente por mulatos e pretos. [...]
Trechos de aulas de curso optativo da disciplina "Fundamentos da Expressão e das Comunicações humanas" da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo. As aulas se baseram em trabalho realizado e apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1969/70. Publicado parcialmente em BrasilEuropa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: ISMPS e.V. 1999, 57-74. ©Todos os diereitos reservados
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