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QUESTÕES DA REVALORIZAÇÃO QUALITATIVA DO CENTRO DE SÃO PAULO (1970)
Antonio Alexandre Bispo
O centro, principalmente o Triângulo, acha-se hoje em completa decadência, física e de significado. Não faz sentido, porém, planejar a remodelação central sob um ponto de vista artificioso de recuperação do passado, porque aqui se colocaria a questão: que fase do passado? Como tentar determinar uma época "ideal" a ser reconstruida, se o passado foi um processo contínuo? Temos aqui, portanto, um problema fundamental do conservacionismo patrimonial. Não podemos esquecer que as concepções de patrimônio histórico, cultural e artístico se transformaram no decorrer dos tempos. Elas possuem uma própria história. No século XIX, época do historicismo, que aqui recebemos um pouco mais tardiamente, pensava-se em reconstruir o passado como "deveria ter sido", ou seja, na sua forma ideal ou idealizada. Essa foi a concepção, por exemplo, que levou à demolição do Palácio do Presidente da Província no Pátio do Colégio, destruindo um conjunto formosíssimo de construções, para refazer-se o antigo colégio dos jesuítas. Ora, o Largo da Palácio tinha uma qualidade toda especial, marcada, musicalmente, pelas retretas das bandas de música, que ali se realizavam regularmente. A sua demolição foi certamente um êrro, mas seria hoje um êrro ainda maior se o demolíssemos para se reconstruir o palácio ou outro edifício qualquer. São raros, no São Paulo metropolitano de hoje, os habitantes que sentem as transformações urbanas em relação a um passado cultural comum. Obviamente, os espaços, mesmo na área central da cidade, não assumem, para a maioria da população, significado histórico a partir de conhecimentos da evolução histórica da cidade, por falta de conhecimentos, e consequentemente, valor como tal. Esse desligamento cultural da cidade com o seu passado somente pode ser sentido mais de perto pelos mais velhos ou pelos estudiosos, que vão descobrindo, com sucessivas surpresas, os traços da fisionomia perdida. Todos eles reclamam, hoje, de uma cidade despersonalizada. O povo, em geral, não tendo conhecido a personalidade perdida, simplesmente confere à realidade outro valor. Sob tais considerações, indagamo-nos do efeito de movimentos e esforços visando "reatar a cidade às suas raízes". O assunto tem sempre o perigo de cair num vago passadismo ou então numa curiosidade mais ou menos exótica. Foi o que pudemos observar, por exemplo, na promoção "São Paulo Antiga", no Jardim da Luz: na noite de gala, uma parte dos participantes, os velhos e os jovens que de uma forma ou outra vincularam-se ao passado, "sentiram" e demonstraram emotivamente o efeito da realização; os demais, principalmente nos dias que se seguiram, compareceram com o mesmo espírito com que se visita um pavilhão chinês ou a uma reconstituição do período Luís XV. Até fantasias à D. João VI puderam ser observadas! O caminho, portanto, parece não ser este, salvo através de uma conscientização em massa, o que não é factível nem desejável. Afinal, não há sentido em querer a assimilação, por parte de nossa heterogênea população, de uma cultura remota, apesar de recente. Estamos sempre tentados a pensar na grande maioria da nossa população como "convidada" a participar da vida da cidade, enquanto que a realidade é completamente outra. Em todo o caso, a revitalização do centro da cidade e o aumento da qualidade de vida da população exige a recuperação e/ou o empréstimo de sentido e significado aos edifícios e espaços. A consideração dos sentidos historicamente adquiridos é de importância fundamental, uma vez que impregnou a memória e impregna a subconsciência dos habitantes. Essa consideração não pode, porém, ser historicista. Poderíamos imaginar, por exemplo, a transformação do centro em enorme área lazer-trabalho e cultural, somente aberta a pedestres. É tendência mesmo o gradativo afastamento do trânsito do perímetro central. De fato, salvo soluções coletivas, como a adoção de uma linha circular, possivelmente com o uso de trilhos (bondes), esteiras rolantes, etc., o homem terá que cruzar o centro a pé. Aliás, já e, em grande parte, o que acontece. Parece, inclusive, que existe um aumento na capacidade do homem de vencer distâncias urbanas: no século XVIII, o largo do Rosário já era distante do centro, no XIX, o lado além-Anhangabaú, agora, todo o centro é pequeno. Com a exclusão do trânsito de veículos, a nivelação das calçadas com o leito das ruas, que deveriam, porém, deixar reconhecer o traço do leito central, a cidade poderia ser transformada numa espécie de agradável boulevard central, apto para o trabalho, para o lazer e também para a recuperação como local de moradia. A complementação ambiental precisaria ser planejada, por exemplo, permitindo-se que bares e confeitarias utilizassem o leito de ruas e os lados do Teatro Municipal. A possibilidade de construção de um anfiteatro no Largo São Francisco poderia ser estudada, a distribuição organizada de bancas de revistas e floriculturas, etc. Enfim, em linhas gerais, deveríamos encarar a região como um todo mas valorizar os micro-espaços, estabelecendo critérios de aproveitamento e regulamentação. Sob este aspecto, a música e os espetáculos em geral assumem uma importância toda especial. Precisariamos aqui valorizar a existência do Teatro Municipal e talvez a do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e tentar incentivar o estabelecimento de novos teatros e salas de concerto que dessem continuidade, sob novos signos, à tradição dos antigos teatros São José, Politeama, Santa Helena e outros. O Vale do Anhangabaú, porém, deveria ser recuperado sobretudo através do seu significado geográfico, de vale, e, portanto, revalorizando o conceito do antigo parque que deveria estar orgânicamente vinculado com os jardins laterais do Teatro Municipal. Toda a quebra de vínculo orgânico e estilístico com esses jardins deveria ser muito bem refletida.
Trechos de aulas de curso optativo da disciplina "Fundamentos da Expressão e das Comunicações humanas" da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo. As aulas se baseram em trabalho realizado e apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1969/70. Publicado parcialmente em BrasilEuropa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: ISMPS e.V. 1999, 57-74. ©Todos os direitos reservados
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