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EDIFÍCIOS E ESPAÇOS DE SIGNIFICADO SÓCIO-CULTURAL PROFANO DA ANTIGA URBE (1970)
Antonio Alexandre Bispo
Vamos considerar as principais casas de espetáculo da cidade a partir da segunda metade do século XIX e, a partir daquilo que conhecemos do seu repertório, tentar detectar o seu significado na urbe. Baseamo-nos aqui sobretudo em notícias de jornais da época e em publicações de Carlos Penteado de Resende, em particular no seu substancioso livro sobre as tradições musicais da Faculdade de Direito. Foi com a inauguração do Teatro São José, a 7 de setembro de 1864, que a região da atual Praça João Mendes adquiriu um significado cultural "profano" no sentido destas considerações. Esse teatro existiu no local onde hoje se encontram os fundos da catedral. Foi o primeiro dos teatros "São José" construídos na Paulicéia, nome dado em homenagem a José Saraiva, presidente da província que autorizou a sua construção. Incenciou-se na madrugada de 15 de fevereiro de 1898. No dia 23 de agosto de 1873 inaugurou-se o Teatro Provisório Paulistano, situado na Rua Boa Vista, emprestando a essa rua um significado sócio-cultural que guardou durante décadas é que hoje está totalmente desaparecido. Comprado pelo industrial Antonio Alvares Leite Penteado, foi demolido, tendo-se construido outro no mesmo lugar, o qual, com o nome de "Teatro Santana", foi inaugurado na noite de 23 de maio de 1900. O Vale do Anhangabaú ganhou um novo significado sócio-cultural, no sentido destas considerações, com a construção do teatro Politeama. Esse teatro era, como edifício, um grande barracão coberto de zinco, com pequena porta de acesso na Rua São João, à altura da Avenida Anhangabaú, outra larga, de serviço, na Rua Formosa, mas os cronistas afirmam ter sido a mais praticável casa de espetaculos de São Paulo. Com ótima acústica, situado em grande área, favorecia enormemente o trasporte e o manejo dos cenários e dos guarda-roupas dos grandes conjuntos. O Politeama transformou-se numa instituição caracteristicamente paulistana. Durante muitos anos deu abrigo aos mais diversos gêneros de espetáculos, a cafés-concerto, a circo, foi palco de grandes companhias estrangeiras de todos os gêneros, dramático, lírico e de opereta. Lá representaram Sarah Bernhardt e Maria Guerreiro. Artistas volantes, cançonetistas, ilusionistas, acrobatas, comicos, malabaristas, etc. ali se apresentavam quando passavam por São Paulo dentro do circuito artístico Rio, São Paulo, Montevideo e Buenos Aires. O apogeu do sentido sócio-cultural do Vale do Anhangabaú foi atingido com a construção do grande Cinema Central, um dos projetos teatrais de maior envergadura da cidade, de curta e trágica vida e infelizmente esquecido, a não ser na memória guardada no nome do Viaduto Dna. Paulina. Entre 1900 e 1922, São Paulo conheceu o seu apogeu em número e qualidade de casas de espetáculos, caracterizando qualitativamente muitas de suas áreas, não só as centrais. A construção do Teatro Municipal, que pela riqueza e grandiosidade do projeto de Ramos de Azevedo foi admirado em todo o Brasil, revalizava com a construção do Teatro Colombo, de linhas mais leves e arrojadas. Este teatro, construido por esforços da comunidade italiana do Brás, manifestava a importância social alcançada pelos imigrantes na Paulicéia. Na inauguração, a população do Brás parece até mesmo ter procurado ofuscar o brilho do Teatro Municipal. Enquanto este abriu as suas portas com uma ópera de secundária importância de Ambroise Thomas, apesar de severas críticas da comunidade campineira, que desejava uma ópera de A. Carlos Gomes, o Teatro Colombo apresentou o próprio Mascagni como regente. Antes da sua demolição foi possível vistoriar esse edifício no âmbito de um projeto de levantamento das casas de espetáculos de São Paulo iniciado em 1965. Mais ou menos na mesma época construiu-se o Teatro São Paulo, no terreno da antiga Chácara dos Ingleses, então frigorífico municipal (Tendal Público). Este teatro, infelizmente demolido em 1970, mostrava aindas nas suas linhas sóbrias um dos melhores exemplos do "art nouveau" em São Paulo. Um de seus pontos altos deu-se em 1923, quando da realização de um congresso de monarquistas com a presença do próprio herdeiro presuntivo do trono. Também foi possível fazer uma vistoria deste teatro antes de sua demolição. Quanto aos cinemas, cumpre citar "A lanterna mágica", trazida da Europa por Benjamin Schalch em 1889 e que marcou o início da história do cinema em São Paulo. Existiu por pouco tempo, por funcionar com um gás especial, de difícil produção. Em 1907, Francisco Serrador, unindo-se à empresa Richebourg, adquiriu o Teatro Santana da Rua Boa Vista e construiu o primeiro cinema de São Paulo, inaugurado a 4 de agosto. As sessões eram noturnas e apresentavam filmes de atualidades da "Pathé", complementados por naturais e "slap-sticks", breves números cômicos. O proprietário, animado pelo sucesso do empreendimento, adquiriu mais duas casas no Vale do Anhangabaú: o "Bijou Theatre" e o "Bijou Salon", vizinhos do Teatro Politeama. Não precisamos salientar que os filmes apresentados eram acompanhados por música ao vivo, por pianistas, pequenos conjuntos instrumentais e orquestras. No estudo da hermenêutica da urbe não podemos fazer uma história da cultura por assim dizer erudita, considerando apenas instituições de clara função cultural ou sócio-cultural, como, por exemplo, os teatros. Para nós assume particular interesse a vida sócio-cultural que se desenvolveu informal- e espontaneamente nos largos, nas praças, nas confeitarias e nos cafés. Quanto às grandes casas de espetáculo, o que nos interessa é talvez mais a vida sócio-cultural que se animou ao seu redor, onde nasceram contactos entre artistas e o público, as prosas, os discursos de improviso, as idéias geniais....Trata-se, portanto, do esforço incrivelmente difícil de tentarmos "re-"sentir espaços, de realizarmos história cultural naquilo que ela tem de mais diáfano e inconcreto. Quase que uma tentativa de percepção empática de retalhos perdidos da alma da urbe. Como salienta Gilberto Leite no seu livro A cidade e o planalto, a amarração social possibilitada pela instituição "visita", de tanto uso em São Paulo em todo o decorrer do século XIX, exerceu papel significativo para a formação do que se chama de opinião pública. O lazer em família, as visitas,os saraus, os encontros, constituiam, certamente, a infra-estrutura do convívio social. Entre outros, cumpre lembrar das reuniões nas chácaras que alguns fazendeiros mantinham na capital em meados do século XIX. Tais reuniões familiares e de amigos foram porém não só importantes na formação do substrato sócio-cultural da cidade, mas sim também para o empréstimo de sentido às casas, repúblicas estudantís e chácaras. A partir daí, a rede social transformou-se paulatinamente. As reuniões e festas, primeiramente ligadas com a vida religiosa, tais como batizados e casamentos, haviam passado já há muito a ter uma vida própria com os serões familiares e as soirées dançantes. Para um outro tipo de freguesia, ou melhor, sobretudo para homens, havia os bares e bilhares, por exemplo o que era famoso na década de vinte, de Antonio José Pereira dos Santos na Rua do Comércio, e as boticas, tais como a "Botica do Lúcio" e a do Dionísio Aeropagita. Os contactos em pequenos grupos, a troca de idéias e impressões, foram de importância como elemento forjador de elos comunitários. Se antes os polos de concentração e de referência sócio-cultural tinham sido sobretudo as igrejas, aos poucos as reuniões de cunho mundano assumiram cada vez mais importância na caracterização qualitativa da vida da urbe. A importância do agrupamento de atividades profanas com toda a sua amarração social nos largos em torno das igrejas, chega a tal ponto de vencer o próprio sentido marcadamente religioso do local, como foi o caso do Largo do Rosário, hoje Pça. Antonio Prado. Ao estudarmos a transformação de significados do centro de São Paulo, não podemos deixar de considerar as características e as metamorfoses dos dois triângulos que sempre o estruturaram. O primeiro, formado pelas ruas Direita, XV de Novembro e São Bento, o outro, composto pelas ruas Boa Vista, Líbero Badaró e José Bonifácio. Ambos os triângulos foram determinados, nas suas origens, por construções religiosas, ou seja, tiveram os seus pontos angulares determinados pelo sentido espiritual das igrejas. Além do mais, não podemos esquecer a função religiosa dos oratórios e dos nichos, em especial o dos "Quatro Cantos". Do ponto de vista musical, lembramos das ladainhas entoadas às Ave-Marias e dos motetos e cantos de Verônica das procissões de Semana Santa à frente dos oratórios. No primeiro Triângulo o verdadeiro centro da cidade, centralizava-se o comércio de mais alto nível, as confeitarias, as ourivesarias, as livrarias, as casas de moda, as charutarias, as papelarias e os grandes estabelecimentos de comércio a varejo. A denominação das casas de moda feminina denota a marcada influência francesa no São Paulo de então: "Madame Pehau", "Pigmalion", "La Saison", e, mais tarde, a oficina da "Madame Sage". A Rua Direita era a mais importante das arestas do Triângulo. Lá se encontravam a Casa Alemã, a Casa Lebre, as confeitarias Fasoli e Naegel, A Casa Kosmos, fundada em 1906, e o Grande Hotel de França. O Largo do Rosário já não era mais tanto um dos pontos angulares, mas sim quase que o coração da cidade pela passagem do século. Toda a vida social e alegre da cidade, os casos picarescos, as novidades e os últimos ditos do espírito eram ali "fervidos" em "rodinhas", espalhadas, aqui e ali, em pequenos grupos. A Casa Seleta, vendendo cigarros, charutos e pertences do ramo centralizava, todas as tardes, incansáveis conversadores de esquina. Ela se localizava em frente ao velho Café Brandão, que ocupava o primeiro andar de um grande casarão derrubado para dar lugar ao edifício Martinelli. Do lado oposto ficava a muito frequentada "Brasserie Paulista".Fora da área triangular, havia próximo ao centro de São Paulo um aprazível recanto, o "Bar Municipal", magnificamente instalado em dependências do Teatro Municipal. Ponto de reunião da "jeunesse dorée" durante muitos anos, funcionou um pouco como club reservado e confeitaria de luxo. Lá se podia tomar desde chá caseiro até champagne, passando por uma série de todo o tipo de aperitivos franceses.
Trechos de aulas de curso optativo da disciplina "Fundamentos da Expressão e das Comunicações humanas" da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo. As aulas se baseram em trabalho realizado e apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1969/70. Publicado parcialmente em BrasilEuropa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: ISMPS e.V. 1999, 57-74. ©Todos os direitos reservados
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