Academia Brasil-Europa© de Ciência da Cultura e da Ciência Akademie Brasil-Europa© für Kultur- und Wissenschaftswissenschaft
»_português---------»_deutsch---------»_impressum---------»_contato---------»_Brasil-Europa.eu
VESTÍGIOS DA TRADIÇÃO MUSICAL EM PROCISSÕES DE SÃO PAULO (1970)
Antonio Alexandre Bispo
Até relativamente pouco tempo atrás mantiveram-se muitas práticas religiosas e religioso-musicais que remontavam ao nosso tempo colonial. Vamos aqui considerar algumas delas. A procissão de Corpus Christi foi, sem dúvida, a mais importante da cidade até fins do século XIX. Criava, segundo informantes, uma atmosfera de alegria na cidade. Fazendeiros vinham de longe para os sobrados da cidade assistí-la. No dia anterior, a procissão era anunciada por meio de tambores e fogos. A própria procissão era aberta por cavalos profusamente enfeitados, cavaleiros africanos vestidos com capas vermelhas e chapéus de plumas, tocando trompas e tambores. Uma imagem de São Jorge seguia montada a cavalo, com roupas de ricos bordados, lança e escudo. A própria Câmara incentivava o brilho da procissão, publicando os cidadãos, sob pena de multa, a branquear muros e casas e a lançar flores e folhas pelas ruas em que ela passaria. Com essas características, essa procissão saiu pela última vez em 1872. Em diversos bairros da Capital realizam-se ainda hoje procissões de Corpus Christi muito concorridas, com intensa participação popular, manifestada na decoração das ruas com folhas, flores, serragens, café, cereais, tampas de refrigerantes, pinturas, etc. ( ...) A fisionomia do catolicismo popular da cidade até fins do século XIX foi também marcada pela procissão de traslado da imagem de Nossa Senhora da Penha para a Sé, parando na igreja do Brás. Tal traslado acontecia por ocasião de sêca ou de grave epidemia, participando dela altas autoridades, membros da Câmara e magistrados. ( ...) Uma das mais tradicionais procissões da Capital era a dos Passos. Ocasião de penitência, tinha, como principal elemento caracterizador, as paradas diante de cada Passo, sete grandes oratórios que permaneciam fechados durante todo o ano. Constituíam, portanto, objeto de particular atenção da população, não sòmente pela piedade que despertavam, mas, principalmente, pela curiosidade e o carinho em ver as imagens apresentadas apenas nessa ocasião do ano. Valorizados pela raridade da ocasião, como diz Affonso A. de Freitas nas suas Reminiscências Paulistanas, "os Passos eram ornamentados por particulares a capricho e gosto, que nem sempre era bom, de cada um. Apesar dos anacronismos flagrantes e da ornamentação esdrúxula, superabundante de espelhos que só por alegoria muito velada poderia alí aparecer, os devotos, que então era quase todo o povo paulistano, occoriam procissionalmente à visitação dos Passos no maior respeito e circunspecção religiosa." Nessa procissão executavam-se os Motetos dos Passos, diante de cada nicho. Em geral, os motetos eram cantados sem acompanhamento instrumental, ou, às vezes, com um contrabaixo dobrando o baixo. Neste caso, o instrumento era carregado por todo o trajeto da procissão. Existem, entretanto, em várias cidades do Brasil, a prática de acompanhamento instrumental dos motetes, às vezes com muitos instrumentos. Em Itú, por exemplo, com música de José Mariano da Costa, de 1890, os motetos eram acompanhados com duas flautas, dois violinos, trombones e saxofones; alguns meninos ganham para segurar as partes na hora da execução. Em São Paulo do século XIX, a música era executada nos seguintes locais onde se levantavam os Passos: 1) Rua do Carmo (onde se via Jesus orando no Horto); 2) Rua do Rosário (Jesus caminhando sob a cruz); 3) Rua Boa Vista (Flagelação de Jesus); 4) Quatro Cantos (Encontro com a Virgem); 5) Rua Direita (Jesus sentado numa pedra); 6) Rua de São Gonçalo (Encontro com a sua mãe); 7) Rua de Santa Tereza (Cai sob o peso da cruz). Finalmente, na Igreja do Carmo, via-se a imagem de Jesus Crucificado. Nos Quatro Cantos, ou seja, na esquina da Rua Direita com a de São Bento, importante local na estrutura urbana do antigo São Paulo, dava-se o encontro de Jesus com Nossa Senhora. Nessa hora, ouvia-se um sermão. É curioso observar que a ordem dos Passos era realmente trocada em São Paulo. O sétimo Passo, na rua de Santa Tereza, localizava-se entre as ruas das Flores e do Quartel, hoje 11 de agosto. Após a retirada dos oratórios, e devido às importantes modificações urbanas, tais como a transformação profunda que sofreu a Rua do Rosário (XV de Novembro) com a demolição da Igreja, os Quatro Cantos com a posterior abertura da Praça do Patriarca, e a demolição do Convento de Santa Tereza, a procissão dos Passos modificou o seu itinerário. No nosso século, na véspera da Semana Santa, ainda trocavam-se as imagens de Nossa Senhora das Dores que se achava na Igreja da Boa Morte com a do Senhor dos Passos, pertencente à Irmandade do mesmo nome, instalada na Igreja de Santo Antonio. No dia da procissão, o encontro dava-se na Praça João Mendes. Cantavam-se os Motetos dos Passos nos seguintes pontos: 1) Igreja da Boa Morte; 2) Igreja dos Remédios; 3) Em frente ao Palácio da Justiça; 4) Igreja de São Gonçalo; 5) Igreja de São Francisco; 6) Igreja da Ordem Terceira de S. Francisco; 7) Igreja de Santo Antonio. Os motetos de números 5 e 6 eram cantados em seguida, por serem as duas igrejas vizinhas; os cantores colocavam-se entre as duas e cantavam os dois motetes sucessivamente. Com a demolição da igreja dos Remédios e a mudança da Irmandade dos Passos para a sua Igreja na Avenida Rebouças, essa prática secular foi radicalmente modificada. Vamos estudar os motetos cantados através dos tempos nessa procissão. Segundo o informante, tais composições seriam obra de Carlos Cruz. Essa informação parece porém ser duvidosa, pois esses motetes são estilisticamente muito mais antigos e as partes se apresentam bastante manuseadas. Talvez tenham pertencido apenas a esse mestre, pois trazem a observação explícita "pertence a Carlos Cruz". ( Exemplo) A Procissão do Enterro na Sexta-Feira Santa foi aquela que mais longamente guardou as tradições de São Paulo colonial. Historicamente, sempre foi uma procissão muito concorrida, de intensa dramaticidade. Foram famosas as procissões do Brás, da Lapa e de Santo Amaro. Na sua frente, normalmente vinha um centurião de grande estatura, fato que ainda se observa em algumas igrejas, hoje, que colocam na procissão legiões de guardas romanos. De quando em quando se interrompe a procissão para se ouvir o Canto da Verônica: "O vos omnes qui transitis per viam attendite et videte sit est dolor sicut dolor meus." Nos dias atuais, é a procissão organizada pela Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos aquela que mais desperta o interesse histórico-cultural e musical, por ter mantido e desenvolvido características próprias, por continuar a ser realizada com grande empenho popular e por correr as ruas centrais. Na sua localização antiga, na atual Praça Antonio Prado, a Igreja do Rosário organizava a procissão pelas ruas do Triângulo. Depois de sua mudança, em 1906, o itinerário passou a ser o seguinte: Rua Visconde do Rio Branco, Rua Vitória, Avenida São João. Atualmente, a procissão corre as mesmas ruas, só que em sentido inverso. Ela é aberta por fileiras de anjos; segue a irmandade, composta por pretos e mulatos vestidos com opa azul celeste e ombreira branca, com archotes. A seguir, vem o grupo de cantores masculinos que entoa os motetos atribuídos ao ex-mestre da própria irmandade, Carlos Cruz. Seguem-lhe o grupo de cantoras, chamadas "Marias Beús", que cantam a peça "Jerusalem", atribuída ao mesmo mestre, mas de forma totalmente diversa da partitura, devido às transformações decorrentes da transmissão oral. A Verônica canta um tradicional e anônimo canto, subindo em cima de uma pequena escada ou cadeira. As paradas da procissão são na intersecção da Avenida São João com a Avenida Ipiranga, na Rua Vitória e na esquina da Avenida Rio Branco com a Ipiranga. Singulares são os guardas do sepulcro, vestidos com roupas especiais, brancas, com a cabeça enfaixada, o que, segundo informações da própria irmandade, foi uma invenção de Carlos Cruz, cujo retrato pode ser visto nos baixos da igreja. A banda de música que acompanhava a procissão era antigamente a do famoso Veríssimo Glória ou a da Guarda Civil. Hoje, convida-se, entre outras, a de Santo Amaro. ( ...)
Publicado em partes em Brasil-Europa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: I.S.M.P.S. e.V. 1999, 180-186. ©Todos os direitos reservados
» zurück: Materialien