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O PAPEL DA DANÇA NA HISTÓRIA DA MÚSICA NO BRASIL DO SÉCULO XIX (1971)
Antonio Alexandre Bispo
Na comemoração do dia 7 de setembro deste ano, feriado que nos faz comemorar a Independência do Brasil, em 1822, e, portanto, o início do Brasil como nação emancipada politicamente, julgamos que seria de interesse tratar da questão da independência (ou da dependência ) sob o aspecto musical. Esta questão se relaciona com o problema do Nacionalismo na Música. Na História da Música Brasileira valoriza-se a música inspirada no folclore ou com elementos dele tirados na formação da música brasileira com características próprias. Estamos acostumados a encarar e valorizar nesse sentido as primeiras obras com caracteres nacionais de Brasilio Itiberê, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno e outros. Fala-se muito de "fases"ou "gerações" nacionalistas. Esse tratamento da questão da nacionalidade é, porém, superficial e ultrapassado. Elas são obras do fim do século XIX e a Independência política do Brasil foi um resultado de acontecimentos do início do século. A idéia de que a emancipação cultural e musical veio gradativamente e posteriormente à independência política me parece simplista e a-histórica. Temos aqui, portanto, a necessidade de realizarmos uma revisão de nossos conceitos a respeito do século XIX. Não podemos continuar a pensar que toda a música anterior àquela com elementos inspirados ou retirados do folclore tenha sido espúria ou sem valor, mera cópia da música européia da época. Basta lembrarmos que muitas das obras musicais que sentimos como caracteristicamente brasileiras dos primeiros anos do século XX se fundamentam, sob muitos aspectos, na música de salão e de dança de décadas anteriores. Lembramos aqui da importância da Habanera na formação da música que hoje sentimos como brasileira, embora a Habanera, em si, não seja considerada como tal. Para exemplificar tal fato, vamos ouvir agora uma Habanera de Henrique Alves de Mesquita. [Exemplo] A música do século XIX deve ser porém considerada não apenas como precursora da música com características nacionais. Ela deve ser estudada e valorizada no seu contexto próprio, vista históricamente e não de um ponto de vista anacrônico. Nesse estudo, assume particular importância a formação, no decorrer do século XIX, de um repertório com características ligeiras, ao lado da música sacra e da música de concerto. Pode-se dizer que aqui se trata de um fenômeno social, burguês, de grande interesse para o estudo da formação histórica da sociedade brasileira. A música de salão assume sob esta perspectiva uma importância toda especial. Não se pode compreender muitos aspectos do desenvolvimento posterior da música erudita no Brasil e mesmo fatos do folclore atual sem o estudo dessa música executada nos saraus familiares do século XIX. Infelizmente, ela tem sido até hoje pouco estudada metodica- e seriamente. Não sendo valorizada, as músicas se perdem. Demos início, portanto, a um programa de pesquisa da música de salão do século XIX. Além da procura de peças, tentamos encontrar dados para estudá-la dentro da sua época e situação cultural. Não podemos esquecer que essa música não só foi executada em soirées que incluiam a dança, mas sim que as próprias partituras impressas para piano representam danças da época, embora às vezes estilizadas ou abreviadas. Nem sempre apresentam dados precisos quanto a andamento e interpretação. Não sabemos mais, porém, como essas danças foram executadas. Desconhecemos os seus passos e os gestos correspondentes. Não podemos, assim, compreender o sentido das peças musicais e executá-las de forma adequada. Temos aqui uma questão que diz respeito não apenas à História da Música, mas sim também à Pesquisa Histórica da Dança. Entre os documentos recentemente descobertos, vamos tratar hoje de uma publicação que encontramos na Biblioteca Municipal de Poços de Caldas, Minas Gerais. Trata-se do Manual de Dança methodo facil para aprender a dançar sem professor, composta por um mestre de dança e impressa na Typografia da Livraria Magalhães. Nas suas últimas páginas, encontramos indicações de outras obras que vamos tentar detectar e estudar. São as seguintes: Choros e Serenatas - belíssimo repertório de modinhas para serenatas e saraus escriptas e colleccionadas por Natalino Graciano contendo as melhores poesias de Catullo da Paixão Cearense, Gonçalves Crespo [...]. Cantora Brasileira ou collecção de modinhas, recitativos, canções, serenatas e lundús sentimentis caprichosamente organzada por um "Coração sensivel". Lyra do Capadocio - magnifica coleção de modinhas, lundús, recitativos, canções, etc. Nesta collecção se encontra a popular canção italiana "Maria" que tão apreciada é pelos trovadores. - Monologos e Cançonetas collecção dos melhores monologos e cançonetas com musica, poesias dramáticas e uma comedia original. Livraria Magalhães, R. Alvares Penteado, 27. Com base nesse Manual de Dança para aprender a dançar sem professor, tentamos recuperar, nos últimos dias, as danças do passado que vamos hoje executar juntamente com algumas peças levantadas. Vamos lembrar suscintamente de alguns pontos que aprendemos desse Manual, ilustrando-os por meio de esquemas. Quadrilha francesa Os passos são divididos em "grands et petits battements", "battements sur le coud pied", "assemblé", "jeté", "échappé" e "glissade, a coupé dessus" e o "coupé dessous". Esses termos conhecemos ainda, em parte, da execução das quadrilhas no folclore de hoje. Ele fala de 5 figuras: "pantalon", "été", "poule", "pastourelle", "finale" ou "galop". Inicialmente, cada cavalheiro vai convidar uma dama. Para ser seu vis à vis vai outro cavalheiro fazer um convite semelhante. Não se pode formar quadrilhas com menos de dois ou quatro pares. 1) Pantalon. a) Chaîne anglaise et balancé. Cada parte tem 16 compassos. Na primeira figura, dois cavalheiros e duas damas, fazendo vis à vis, adiantam-se, um par para o outro, dando-se as mãos que largam no momento de atravessar e que tomam outra vez ao juntarem-se, voltando depois a seu lugar. Repete-se da mesma maneira. Na segunda figura, cada cavalheiro passa para trás de sua dama, um "chassé-croisé en glissant". b) Chaîne des dames. As duas damas vis à vis mudam de lugar e dão as mãos ao passar, depois dão a mão esquerda aos cavalheiros que já passaram à direita. O período tem 8 compassos. c) Promenade et demi chaîne anglaise. Cada par, cavalheiro e dama, atravessa com o vis à vis dirigindo-se obliquamente à direta. Para voltar ao seu lugar, os dois pares largam as mãos e executam uma demichaîne anglaise, atravessando como no princípio da figura. Essas duas figuras duram 8 compassos. 2) Été a) Avant deux. Cavalheiro e dama encontram-se vis à vis, deslocam-se duas vezes para a frente e duas para trás. Essa figura dura 4 compassos. b) Traversé et chassé croisé. O cavalheiro e a dama atravessam e executam um chassé croisé (passar por trás). Essa figura dura 4 compassos. c) Traversé et balancé. O cavalheiro e a dama atravessam de novo e tomam seus lugares. A pessoa que ficou no lugar faz balancé. 3) Poulé a) Balancé à quatre. b) Avant deux, avant quatre e demi chaîne anglaise. c) Pastourelle. d) Finale ou galop. Dansa-se galopando, exceto nos bailes de cerimônia, onde é "passeada". É a figura mais alegre e a mais animada da quadrilha. A orquestra executa primeiro os 16 primeiros compassos. Cada cavalheiro passa o braço direito à roda da cintura de sua dama e sustem-lhe a mão direita ou a sua esquerda. Ela encosta o seu braço esquerdo no ombro do cavalheiro. Em bailes de cerimônia, o cavalheiro não toma a cintura da sua dama, conduze-a simplesmente pela mão. Galope. É uso que algumas quadrilhas terminem com um galope geral em que participam todos os pares que a dançaram. Isso só é uso na intimidade e quando o número dos que dançam é relativamente pequeno. Tem-se as seguintes figuras: a) Promenade. Cada par passa para o lugar do seu vis à vi, obliquando à direita. Volta depois ao lugar. Essa figura dura 8 compassos. b) Deux avant quatre. Consiste no movimento de ir avante e para trás. Da segunda vez, cada cavalheiro muda de dama e de lugar. A figura dura 8 compassos. c) Chaîne des dames. Essa figura, já explicada, também dura 8 compassos. d) Avant quatre et demi-promenade. Os pares dançam esse galope na mesma direção à roda da sala ou volteando sobre si, se o espaço é restrito. Quadrilha cruzada. Esta quadrilha se dança com pessoas dispostas em cruz ou mesmo em diagonal, se a sala for pequena. As figuras são sempre as mesmas. A música e o andamento do compasso são os mesmos da quadrilha ordinária. Os participantes devem fazer as suas evoluções em tempo cada vez mais curto. Assim, é muito animada. Redouia. Essa quadrilha, de origem parisiense, é uma imitação, ou melhor, uma mistura de valsa de dois tempos e da polca-mazurca. Executa-se a 3 tempos, mas mais vagarosamente do que a polca-mazurca. O cavalheiro passa o braço direito à roda da cintura da dama e, sustentando a mão direita na sua esquerda, deslisa o pé esquerdo para a frente e o da direita para a esquerda. Isto no primeiro tempo. No segundo tempo, chega o pé direito e salta sobre o mesmo. No terceiro tempo, chega o pé esquerdo, salta sobre ele, e levanta o direito por trás do esquerdo. Cotillon. Essa era a dança final de um baile. Dança-se "valseando" ou "polqueando". A polca é o modo geralmente mais adotado de dançar o Cotillon, porque, segundo esse manual, muitas pessoas não sabiam valsear ou o faziam incorretamente, enquanto que haveria ninguém que não soubesse dançar a polca. As figuras dançadas variam "ao infinito". Elas brotam da imaginação do cavalheiro que guia o Cotillon e faz executar as figuras. Dele dependem o fogo e a animação, pois escolhe a seu gosto as figuras e não impõe às danças esforços impossíveis. Ele comanda a orquestra, que à sua ordem varia as dança, suspende a execução ou torna a continuar. Polca. A medida do compasso em que se dança a polca é de um quarto, da qual o quarto tempo é em descanso. Ela se caracteriza por movimentos moderados e graciosos. O cavalheiro segura a dama pela cintura com o braço direito. A dama descansa a mão esquerda sobre o ombro do cavalheiro. A mão esquerda e a direita une-se ou prende-se. O cavalheiro dirige a dama à vontade em todo o sentido. O uso mais frequente no fim do século era fazer grandes círculos e executar o passo sem mudar de posição. 1° tempo: o cavalheiro estende o pé esquerdo e salta com o direito, fazendo um glissé. 2° tempo: põe-se o pé direito por detrás do esquerdo. 3° tempo: avança-se um pouco, saltando sobre o esquerdo e levantando ligeiramente o pé direito para estar prestes para o glissé, ou seja, para deslisar. 4° tempo: Descanso. O cavalheiro torna a fazer com o pé direito o que fez com o esquerdo e com o esquerdo o que fez com o direito. O passo é o mesmo para a dama. Somente é vice-versa com o cavalheiro, executa com o direito o que ele faz com o esquerdo. Schottisch. O schottisch, assim como a polca, teve grande voga nos salões dançantes de bom tom. Ele também tem 4 tempos e a posição é a mesma para o cavalheiro e a dama. O cavalheiro avança um pouco e a dama retrocede. O passo inteiro do schottisch divide-se em 3 movimentos. O primeiro tem 4 tempos, o segundo tem 4 tempos, o terceiro tem 8 tempos. 1° movimento. 1° tempo: O cavalheiro arrasta o pé esquerdo para a frente e a dama o esquerdo. 2° tempo: O pé direito vai para atrás do esquerdo. A dama faz o contrário. 3° tempo: O cavalheiro avança um pouco, saltando sobre o esquerdo. 4° tempo. Salta-se com o mesmo pé em vez de descansar como na polca. 2° movimento. O cavalheiro faz glisser com o direito, como o fez no princípio e faz com o esquerdo tudo o que fez com o outro. 3° movimento. 1° tempo: O cavalheiro salta duas vezes sobre o esquerdo, dando uma volta. 2° tempo: Primeiramente com o pé direito e assim por diante, ou seja, esquerdo, direito ... Polca-Mazurca. Essa dança tem compasso de 3/4. O movimento de rotação é executado na mudança do pé. O cavalheiro segura a dama de lado pela cintura (na valsa e na polca é de frente). Varsoviana. Tem a mesma posição que a da polca-mazurca. Valsa a três tempos. A figura geralmente designada para a valsa de três tempos é um grande círculo descrito por meio de pequenos círculos; a direção desses círculos pode ser à vontade. O cavalheiro situa-se ao lado esquerdo da dama. Ele a segura com o braço direito pela cintura, segurando a sua mão esquerda com a direita. A dama descança o braço esquerdo no ombro do cavalheiro. Valsa de dois tempos. A posição é aqui diferente. Ela é tal que os ombros direitos se tocam e o rosto do cavalheiro fica inclinado para a esquerda. Cacan muçulmano. Uma das damas senta-se na cadeira no meio da sala, ficando-lhe à esquerda o cavalheiro que colocara com elegância a mão direita nas costas da cadeira, ouvindo um segredo galante da sua dama, a quem ele diz outro segredo. Outros pares formam uma roda. Depois, cada um dos outros três pares faz o mesmo. Por hoje, vamos ficar apenas com essas descrições. Numa próxima oportunidade pretendemos considerar as quadrilhas imperiais, por exemplo "Les chasseurs de la reine" e os famosos "Lanceiros". O objetivo desta palestra foi mostrar que o estudo da música de salão do passado brasileiro e também em parte do folclore não pode ser feito sem um conhecimento das danças de sala da época. A pesquisa musical une-se aqui à pesquisa da dança e apresenta, como ela, as mesmas dificuldades. Com o conhecimento das danças, a interpretação e a análise dessas peças adquirem novos aspectos e maior interesse. O principal, porém, é o fato de que, com essa pesquisa músico-coreológica, mergulhamos num passado já remoto, revivendo formas de comportamento social e, com isso, aprofundando os nossos conhecimentos da história social e cultural do Brasil. Com esses conhecimentos, vamos também ouvir com outros ouvidos as composições musicais mais tardias que trazem características que nos parecem ser verdadeiramente brasileiras. Pensa-se quase sempre que as nossas tradições musicais vieram apenas das camadas mais simples e mais pobres da popuação; ficamos surpresos quando verificamos que muito do que hoje consideramos como folclore tem origens burguesas!
Conferência proferida por ocasião da comemoração do dia 7 de setembro de 1971 no Conservatório Musical do Jardim América. Publicada em partes em BrasilEuropa & Musicologia, Köln: I.S.M.P.S. e.V. 1999, 110-113. ©Todos os direitos reservados
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