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FIGURAS MARGINALIZADAS DA HISTÓRIA DA MÚSICA EM SÃO PAULO (1971)
Antonio Alexandre Bispo
Até meados do século XX viveram em São Paulo os últimos representantes da tradição sacro-musical propriamente local e regional. Das informações obtidas, podemos tentar esboçar o retrato de quatro desses principais representantes, todos eles provindos das camadas mais simples da população. Temos aqui, portanto, a descoberta de uma esfera da prática musical de grande interesse sócio-cultural e de um grupo de mestres até agora esquecidos ou totalmente desconhecidos por parte de nossos músicos eruditos. Esses músicos foram marginalizados social e culturalmente em decorrência da reforma sacro-musical implantada nas igrejas pela passagem do século. Veríssimo Glória Veríssimo Glória foi uma personalidade de grande importância por quase um século na música sacra paulista. Ele foi mestre-capela, compositor de música de banda e ligeira, e professor de numerosos músicos. Segundo os nossos informantes, nasceu em Bragança Paulista, a 25 de janeiro de 1867 e morreu em São Paulo, à Rua Antonio Tavares, bairro da Aclimação, em 30 de maio de 1952, aos 85 anos de idade. Quando criança, fêz os seus estudos como interno em colégio de freiras e já aos doze anos tomava parte na banda de música. Nos fins do século XIX já se encontrava na capital. Como tenente, participou ativamente das bandas militares dos períodos revolucionários de São Paulo. Por volta de 1925 pertencia à Orquestra Sinfônica. Tocava diversos instrumentos, entre eles trombone, contrabaixo, fagote e requinta. Tornou-se conhecido popularmente pela sua famosa banda, "Banda Recreio Artístico", ou apenas "Banda do Veríssimo". Essa banda, presente em quase todas as festas religiosas e procissões de São Paulo, por décadas, foi sempre o principal objetivo de vida do maestro. Sua constituição variava muito. Inicialmente, foi organizada com cerca de 70 músicos. Chegou à casa de 121 figuras, mas, normalmente, o número de músicos variava entre 16 e 25. Veríssimo Glória casou-se duas vezes, primeiramente, com Luiza, da qual enviuvou e, em 1936, com Maria Rosa. Possuia filhos adotivos: José Cupertino Filho, enteado, vulgo Nenê, Albino, Abigail, Mariana, e sua afilhada Herminda, à qual sempre dedicou o maior carinho. Seus maiores amigos eram músicos: Capitão Lorena, Capitão Antão Fernandes, Manoel dos Passos e Carlos Cruz. Hospedava músicos do interior em casa, entre eles Benedito de Moura, um clarinetista que foi durante anos o seu copista e que se dava muito à bebida. O seu local de ensaios foi, por muitos anos, a casa n° 32 da Rua Espírita, onde se encontrava, invariavelmente, todas as quartas ou quintas feiras. Dirigia os ofícios da Semana Santa da Igreja dos Remédios, famosos em todas as cidades ao redor de São Paulo. Também atuava na Igreja dos Enforcados. No interior, atuava nas festas de várias cidades, principalmente nas de Pirapora do Bom Jesus, de Amparo e Jundiái. Cuidava da aparência, usava colete branco, jóias, correntes de ouro e fazia os seus próprios cigarros de palha. Era muito bonachão, "tirava até a camisa" para quem se apresentasse como músico. Nos ensaios era rigoroso: tinha o hábito de coçar atrás da orelha e bater o pé: "Não se entra na casa sem olhar o número da porta", era uma "bronca" comum aos músicos que não observavam o compasso. Gostava de contar anedotas e frequentava regularmente o Café Girondino na Praça da Sé, ponto de encontro de músicos. Nos seus últimos anos, preferia o Café Eschenick na mesma praça, que congregava músicos de orquestra e banda. Os músicos de jazz se reuniam em frente à Catedral. Na realidade, tinha uma grande aversão por jazz. Certa vez, seu enteado, José Cupertino, resolveu "reformar" o repertório, adquirindo várias músicas modernas. Preparou uma grande festa, com feijoada, cerveja e executou-as para Veríssimo. Este coçou a orelha, saiu da sala e voltou dizento: "Bom, vamos para uma das minhas... era o dobrado Diabo, mundo e carne". Entre as suas músicas religiosas, citam-se ladainhas, além de composições sobre o texto do Tantum ergo e do Te Deum. Ele também copiava. Foi grande destribuidor de músicas para o interior, na época em que morava na rua Glicério n° 32. Entre os seus alunos, merece ser salientado Antenor Carlos Vaz, seu aprendiz por mais de quatro anos e que se tornou mais tarde dirigente da banda de Embu Guaçu. ( ...) Carlos Cruz Carlos Cruz, segundo os nossos informantes, nasceu em Santos, em 1875, e morreu em 1948, com 73 anos. Foi aluno do Liceu Sagrado Coração de Jesus. Tornou-se um dos mais influentes músicos de igreja do início do nosso século, um dos últimos representantes da música sacra com acompanhamento orquestral. Ele residiu numa pensão na Rua da Conceição, hoje Ana Costa, onde só viviam músicos. Muito vaidoso, andava sempre muito bem arrumado. Casou-se duas vezes. A sua segunda mulher era africana. Desta forma, quis que se pintasse um quadro seu, vestido de soba africano, com xale e charuto, embora não fumasse. A sua primeira mulher, alemã, chamava-se Júlia. Carlos Cruz chegou a tocar na Capela de São Miguel, na Rua Bráulio Gomes, hoje transferida para a Rua Taquari. As suas principais igrejas eram, entretanto, as de Nossa Senhora dos Remédios, onde dirigia a música e onde executava a sua obra mais comentada, as jaculatórias de São Benedito. Também muito contribuiu para a irmandade, compondo peças especiais, como os Motetos de Procissão de Semana Santa, inventando as roupas dos "maomés", etc. O seu retrato encontra-se na sacristia da igreja. Aliás, foi cantor da Sé velha, no período anterior ao Mtro. Furio Franceschini. Carlos Cruz era um bom baixo. Na década de vinte, mais exatamente em 1922, já tocava na Igreja de Santa Ifigênia, sendo este talvez um dos períodos áureos de sua carreira. Conta-se o caso de ter passado certa vez a noite inteira tocando com a sua orquestra em bailes, devendo logo pela manhã acompanhar uma missa de defuntos; não dando tempo de ir para casa, recolheu-se na igreja, indo dormir dentro do ataúde. Perdendo a hora, acordou já no meio da missa, fazendo com que os fiéis saíssem em debandada. Nessa mesma época atuava também na Igreja do Rosário, na Igreja da Boa Morte (Curato da Sé) e no Convento Sagrado Coração. As principais festas eram as do Setenário da Festa de Santa Cruz na Igreja de Santo Antonio, da Irmandade dos Passos, as do Setenário das Dores, na Igreja da Boa Morte, em agosto, a Novena do Carmo, na Igreja da Ordem Terceira do Carmo, a Novena do Rosário, na Igreja do Rosário, a Novena de São Benedito, na Igreja do Rosário, a Novena dos Remédios, na Igreja dos Remédios, a Trezena de Santo Antonio, na Igreja de São Francisco e a Festa do Divino, na Igreja do Divino Espírito Santo. Carlos Cruz tornou-se famoso em todo o interior de São Paulo. Organizava a música de festas de Jundiaí, Itú, Capivari e outras cidades. Em Itú, participava principalmente da festa de São Benedito. Quase lendárias tornaram-se as suas improvisações ao órgão. Nas lições de Semana Santa, Carlos Cruz acompanhava o gregoriano fazendo improvisações no baixo. Carlos Cruz também tem importância no campo da música popular. Em 1929, fundou o primeiro Jazz sinfônico, a "Orquestra Carlos Cruz", com a qual se apresentava em inúmeros bailes, às vezes em três ou quatro lugares diferentes por noite. Uma delas, executada pela primeira vez no Club XV de Santos, talvez a mais famosa, foi, segundo os informantes, "A Jardineira que caiu do galho", um dado que mereceria ser comprovado. O maxixe "Cutuba" foi também muito popular. Carlos Cruz morou na Rua Antonio Carlos, na Avenida Brigadeiro Luís Antonio, na Rua Conde do Pinhal, na Rua Vichy na Casa Verde. A sua segunda mulher, Henriqueta Cruz, cujo primeiro marido fora um famoso tenor de Itú, era sogra do "El Tigre", Arthur Frienderracht (Friedenreich?). Carlos Cruz cantou sob a batuta de Veríssimo Glória, muito seu amigo, na Igreja do Brás. Nessa época, cantava com Otacílio Machado, que hoje se encontra no interior, em Limeira. Este cantor gritava muito, pois o seu pai, para encorajá-lo, dizia, segundo os nossos informantes, "berra, meu filho, cobre a voz dos outros" (!). Entre as obras religiosas de Carlos Cruz citamos "Motetos dos Passos" (de autoria duvidosa), "Semana Santa", "Ladainha de São Carlos", "Ladainha menor", "Jaculatória de São Benedito" e "Novena de São Miguel". Vemos aqui uma foto de Carlos Cruz em sua casa na Rua Antonio Carlos e outra tirada em viagem pelo interior, com músicos de sua orquestra, a saber, Menotti Siti, tenor e Domingos Campanile, um violoncelista que sempre tocava com Carlos Cruz. ( ...) Manoel dos Passos Manoel dos Passos, homem de côr, foi um dos mais profícuos compositores de música de igreja de São Paulo. Obras de sua autoria puderam ser encontradas em várias igrejas da Capital e do Interior. Muitas delas apresentam um carimbo de Bragança Paulista. Parece também que atuou durante muitos anos em Santo Amaro. Segundo as informações obtidas, foi irmão de Custódio da Rocha Passos, que também era compositor, de quem conhecemos um "Trêmulo" para a ocasião da elevação e que atuava na Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Dizem que Manoel dos Passos era pintor de paredes e que fazia qualquer concurso por esporte. Conta-se que teve uma rivalidade com o renomado Antão Fernandes, por problemas de capacidade musical, segundo uns, por problemas de ciúmes por causa de uma mulher, segundo outros. Segundo informantes, morreu assassinado com um tiro de garrucha na Praça 7 de Setembro. Como percebemos, os dados biográficos colhidos são incertos. Precisaríamos levantar fontes que esclareçam a sua vida, pois não se pode estudar a história da música sacra em São Paulo em época imediatamente anterior à reforma sacro-musical sem a consideração desse mestre. Dele conhecemos a Missa Nossa Senhora de Belém, de fins do século XIX, que apresenta interessantíssimas simbioses de elementos de diversas origens, sobretudo da prática musical de banda, Ladainhas, uma Salve Regina, um Tanctum Ergo, um Veni, Jaculatórias, além de um Sanctus e Agnus Dei. No campo da música profana, conhecemos o Passo Doble "Partimos para Itororó", o que sugere talvez uma participação do autor na Guerra do Paraguai. Vicente Procópio Vicente Procópio foi um compositor e violinista mulato do século XIX que deixou traços de sua atuação nas cidades de Araçariguama, Pirapora, Itú, Santana do Parnaíba e São Paulo. Segundo os informantes, andava sempre de pala, chinelos e com o violino num saco de estopa, dando-se à bebida. Compunha com grande facilidade e nas horas de necessidade. De suas obras tornou-se famosa sobretudo uma Semana Santa executada tradicionalmente na Igreja dos Remédios de São Paulo, composta também às pressas, como dizem, mas que se tornou conhecida em todo o Interior. Em Santana do Parnaíba, conta-se que certa vez não havia música para a Semana Santa, somente cantochão. Procópio trancou-se em casa e, quando saiu, após algumas horas, já trazia todas as partes prontas. A Semana Santa de Santana do Parnaíba tornou-se conhecida pela sua solenidade, vindo músicos das cidades vizinhas para reforçar a orquestra, como, por exemplo, o renomado mestre Fonseca de Atibaia. Vicente Procópio tornou-se conhecido por tocar bem violino. Várias estórias são contadas a respeito. Dizem que certa vez, quando A. Carlos Gomes voltou da Europa, trazendo consigo muitas músicas novas, mostrou a V. Procópio algumas delas, particularmente difíceis. Afastando-se por alguns momentos, A. Carlos Gomes ouviu Vicente Procópio lendo a música à primeira vista com grande facilidade. Conta-se também que certa vez, no Teatro São José, assistindo ao ensaio de uma peça, V. Procópio riu-se do primeiro violinista e do maestro. Inquirido a respeito, Procópio retirou o seu violino do saco e executou a parte com perfeição. O maestro, surprêso, pediu-lhe o cartão. V. Procópio disse que não possuía cartão, mas que o seu nome encontrava-se na própria partitura, pois era o compositor! Parece que V. Procópio faleceu muito idoso e de forma trágica. Muito doente mentalmente, era guardado por um (ex-)escravo. Este, certo dia, adormeceu. Ao acordar, já não encontrou V. Procópio. Este havia desaparecido, juntamente com um burro e um maço de músicas. Só puderam encontrar o burro, no Tietê abaixo. Todos acham que caiu no rio, assim morrendo.
Publicado em partes em BrasilEuropa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: I.S.M.P.S. e.V. 1999, 180-186. ©Todos os direitos reservados
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