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O PROBLEMA EXISTENCIAL E A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA (1972)
Antonio Alexandre Bispo
Muitas vezes perdemos de vista o sentido da vida ou não vemos mais sentido no mundo. Isso pode ocorrer em situações em que perdemos um ente querido ou nas quais constatamos injustiças inexplicáveis, tais como o sucesso de incapazes e a derrota de pessoas cujo valor respeitamos. O absurdo, o desespero, a desolação e a revolta são próximos. A absurdidade do mundo e da vida é tema de vários pensadores, entre eles, de Jean-Paul Sartre e Albert Camus. No Brasil, estamos mais acostumados a ver o problema do absurdo da existência tratado no teatro. Do ponto de vista musical, não podemos deixar de lembrar que temos um compositor que, no passado, muito se preocupou com problemas semelhantes: Martin Braunwieser. Esse maestro, quando jovem, na Europa, confrontado com a situação causada pela Primeira Guerra Mundial, compôs uma grande peça orquestral altamente insólita denominada "O Teatro do Mundo". Temos, portanto, uma tradição de pensamento e de criação artística neste campo. Não podemos aqui entrar na discussão do existencialismo e dos problemas quase que insolúveis que coloca para a Estética, no caso desta disciplina não ser considerada exclusivamente como Filosofia da Arte. É praticamente impossível supor uma disciplina que tenha como objetivo o estudo do belo, postulando a sua existência em abstrato e colocando o axioma que a Natureza originalmente sempre é bela, mesmo que pareça feia ao homem, se partimos de uma perspectiva ontológica que nega toda e qualquer transcendência e todo o sentido no mundo. Se, porém, não podemos aceitar, sem colocar em questão a razão de ser da nossa disciplina e talvez da própria Licenciatura em Educação Artística, a absurdidade do mundo e da existência, podemos e devemos aprimorar a nossa percepção para a absurdidade do mundo criado pelo homem. O absurdo não nos parece tanto uma questão filosófica, mas antes um problema de natureza antropológica. Este ponto de partida nos parece necessário até mesmo sob o aspecto pragmático, porque senão não temos meios para lutar pela conservação de nosso meio ambiente e pela melhoria da qualidade de vida. Vendo a destruição sem sentido das nossas florestas, ficamos desesperados com a sua absurdidade. Andando pelas nossas cidades, percebemos o absurdo dos fatos urbanos, das ruas sem saída, das ruas planejadas no papel e implantadas numa topografia que as contradiz, dos edifícios construídos de tal forma que impedem a circulação do ar ou a visão de outros, os viadutos que não levam a nada, as superposições não-coadnuantes de diversos planos de urbanização, a disparidade de estilos nos nossos edifícios, etc. Ficamos atônitos com a falta de lógica e de sentido, quer seja este entendido como resultado de planejamento, de pensamento abstrato e racional, quer seja compreendido como resultado de um desenvolvimento orgânico na história. A constatação da absurdidade do resultado arquitetônico e urbanístico no seu aspecto geral, - uma derrota vergonhosa da nossa civilização - , é relativamente fácil. Menos evidente é a absurdidade da prática musical e da composição. Em todo o caso, já percebemos, hoje, o absurdo no antigo ensino de Canto Orfeônico, com as suas aberrações de cunho nacionalista, quando professores de música perdiam horas para transmitir a seus alunos a legislação a respeito dos símbolos pátrios. Também estamos hoje cientes que o solfejo rezado nos nossos conservatórios foi levado muitas vezes ao absurdo, fazendo-se alunos decorar livros de solfejos e realizando-se até mesmo competições....Não percebemos, porém, muitos outros absurdos que nos rodeiam. Basta considerarmos o que acontece nas igrejas sob o ponto de vista musical: os órgãos estragando-se, as orquestras proibidas, e a propagação de uma música sem valor artístico, cultural ou social. Até mesmo o nosso curso de Licenciatura tem muitas absurdidades e vai levar, certamente a muitas outras. O absurdo não é sempre "Kitsch"! Ele não é sempre "Kitsch", pois não é resultado de um ato produtor que visa a "venda" do artefato através de meios apelativos, não corporifica necessariamente o engano e não tem, assim, o sentido do "Kitsch", já que não tem nenhum sentido ou contradiz o sentido. Não é, portanto, inicialmente, um problema da Ética. A sua percepção e o seu manuseio devem ser diferentes dos procedimentos adequados para o caso do "Kitsch". Não seria adequado não levar a sério o seu sentido e gozá-lo sensorialmente, anulando a sua carga explosiva, uma vez que não tem sentido. Ele se define ou através de uma falta, da ausência, ou através da contradição, esta quase sempre decorrente de um processo arbitrário ou da entropia. O modo de superá-lo consiste, portanto, em superar aquilo que o caracteriza. À medida que o absurdo adquire sentido, perde a sua absurdidade. Precisamos, assim, dar sentido ao absurdo ou anular o seu caráter contraditório. Já este seria um argumento para darmos um sentido ao mundo e à vida, caso os considerássemos absurdos. Dar sentido ao absurdo não é, porém, emprestar-lhe um significado qualquer para justificá-lo. O sentido não pode ser dado ao próprio absurdo, pois não o tem, mas sim a um contexto mais amplo no qual seja subsumido. Nesse contexto, a absurdidade do absurdo tem de ser salientada, para ser bem percebida; ela é por fim anulada, pois o contexto no qual se insere faz sentido. O absurdo é levado ao absurdo. A criação desse contexto pleno de sentido é um ato criador. Aquele que o projeta deve visualisar e criar uma obra que englobe o absurdo para lhe dar sentido. Como incluir absurdidade na obra é absurdo, ele deve trabalhar com absurdos: ele compõe com absurdos, mas a sua composição faz sentido. Aqui teríamos talvez uma solução para alguns problemas urbanos. Uma favela, por exemplo, representa um absurdo do ponto de vista urbanístico, uma vez que não tem lógica na ordenação dos espaços e não faz sentido em termos de qualidade de vida de seus moradores. Como o arrasamento de favelas e a sua substituição por edifícios construídos "racionalmente" superam as possibilidades financeiras e também não têm levado a situações favoráveis, por motivos psicológicos ou outros, talvez se devesse procurar outras soluções para o problema. Poder-se-ia projetar um contexto global maior, no qual uma determinada favela fosse subsumida de tal forma que o contexto geral tivesse lógica no sentido urbanístico e sentido em termos de melhoria da qualidade de vida de seus moradores. Já tentamos desenvolver um projeto nesse sentido, não cabe, porém, neste contexto, descer a pormenores. O mesmo poderíamos propor para a música. Temos, por exemplo, muitas canções absurdas, nas quais o texto não combina com a melodia ou que o contradiz no seu sentido. Isso estuda-se na disciplina Prosódia Musical. Esse é o caso, também, de composições anacrônicas, que utilizam textos do passado mas que os tratam com meios musicais estilísticos do presente, ou vice-versa. A solução aqui seria realizar uma composição na qual essa canção absurda ficasse incluída. Precisaríamos compor a partir do absurdo, o que é absurdo, e deveríamos então lançar mãos de meios absurdos. Poderíamos, assim, criar um acompanhamento que fosse absurdo com relação à melodia absurda, ou seja que representasse uma contradição com relação ao seu sentido musical, por exemplo com o uso de meios tonais e harmônicos conflitantes, de bi- ou multitonalidade, de poliritmias heterogêneas, de instrumentação aberrante, de instrumentos inconvencionais e outros aparelhos produtores de som, de citações inesperadas de expressões e recursos estilísticos de diferentes épocas ou de obras de outros autores, etc. Em todo o caso, o resultado da composição será sempre insólito. Se o manuseio adequado do "Kitsch", pretendendo desativá-lo, implica numa atitude de não levar a sério o seu sentido e, portanto, de tomá-lo apenas sensorialmente e gozá-lo, o manuseio adequado do absurdo leva ao insólito. Considerando-se a situação da nossa realidade arquitetônica, urbanística e musical, onde a "cafonice" e o absurdo imperam, parece-nos que tanto o gozar como o criar insólitamente adquirem particular relevância. Como a constatação do absurdo, da falta de sentido, nos leva muitas vezes ao desespero e à revolta, a criação insólita é uma forma não violenta e construtiva de combate. Sendo o desespero resultado da sensação de nos sentirmos presos por aquilo que não faz sentido, pois não vemos saída, a composição insólita, que supera o absurdo, supera a sensação de prisão e serve, assim, à liberdade. Como exemplo de uma tentativa de composição neste sentido consideraremos aqui uma peça escrita a partir de uma das Cantigas Praianas de Vicente de Carvalho.
Aula ministrada no curso de Estética da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo, em 1972. Baseado no trabalho do madrigal da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidadae de São Paulo em 1969. Publicado em Brasil- Europa &Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: ISMPS e.V. 1999, 46-56 ©Todos os direitos reservados
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