Academia Brasil-Europa© de Ciência da Cultura e da Ciência Akademie Brasil-Europa© für Kultur- und Wissenschaftswissenschaft
»_português---------»_deutsch---------»_impressum---------»_contato---------»_Brasil-Europa.eu
KITSCH: UM PROBLEMA ÉTICO-ESTÉTICO ( 1972)
Antonio Alexandre Bispo
Um dos aspectos essenciais do estudo da Arquitetura no Brasil é o da formação do julgamento estético. Esta preocupação deveria ser também no da Música. Na Arquitetura, ela ocorre sobretudo de modo não-verbal, através dos exemplos dados por professores e colegas. Sobretudo informalmente aprende-se a distinguir aquilo que tem ou não valor. Antigamente dir-se-ia que trata-se aqui da formação do "gosto", da aquisição da capacidade de distinguir aquilo que tem "bom" ou "mau gosto", uma terminologia ligada ao paladar e que indica a natureza não-racional dessa aptidão. Hoje, aprende-se mais facilmente a distinguir aquilo que pode e deve ser considerado como "cafonice", uma vez que falta uma palavra adequada para exprimir o fenômeno. Quanto mais a sensibilidade para a percepção daquilo que é cafonice se apura, tanto mais se fica surpreendido pela sua difusão e poder. A cafonice e o cafona parecem ser graves problemas para o Brasil. Eles aparecem em todos os campos das artes e da cultura em geral. Na Música, em particular, o cafonismo é quase que generalizado. Parece ser um campo que atrai particularmente cafonas. Grande parte do repertório musical praticado pode ser chamado de cafona; cafona é em geral a forma da apresentação musical em concertos, e basta observarmos os professores de piano, os conservatórios e as críticas nos nossos jornais para constatarmos que a caretice e a cafonice imperam. O mesmo se dá na composição: ainda hoje temos compositores que continuam a compor valsas, fantasias e improvisos numa linguagem de salão do início do século e com conteúdo programático: Floresta Amazônica, Dança de Yaras, etc.. O mais grave, porém, é que há um cafonismo camuflado, que apenas se percebe com o gradativo aperfeiçoamento do julgamento estético. É o caso de algumas obras de música sacra contemporâneas, mas também sinfônicas e de câmara. Será que também não caimos nós na cafonice, sem estarmos disso conscientes? Será que a assimilação, por exemplo, de modêlos e técnicas de construção e composição dos grandes centros da vanguarda não leva a produtos cafonas, embora mascarados? A preocupação - e o dever - de apurar a sensibilidade e aumentar a capacidade de julgamento estético implica portanto na preocupação por uma contínua auto-crítica. O reconhecimento de muito daquilo que pode ser chamado de cafona é relativamente fácil, através de exemplos. Uma estátua de gesso profusamente colorida do Coração de Maria, uma Ave Maria exageradamente sentimental revelam-se ridículas quase que de imediato. Difícil é, porém, definir o fenômeno em si. Pelo que tudo indica, a cafonice corresponde mais ou menos àquilo ao que se chama, em alemão, de "Kitsch" e que é um termo usual nos meios artísticos para designar produto artístico barato, sem maior valor estético, de mau gosto. Essa palavra parece ser derivada de uma expressão verbal usada por comerciantes de arte da segunda metade do século XIX com o sentido de "fazer dinheiro". Teríamos aqui então um fato fundamental para a definição do "Kitsch", ou seja, o seu vínculo com o comércio: o produto é feito com o objetivo primordial de ser vendido. Para isso, precisa agradar, conquistar, cativar e prender a atenção do maior número possível de pessoas. O artista não faz aquilo que sente a necessidade de criar, mas sim aquilo que julga ser o desejado por aqueles que vão comprar o seu produto. No fundo, ele não é um criador, mas sim um produtor de artefatos e chamarizes. Apresentando o seu produto como criação, mente. Este arremêdo de obra criadora é, portanto, produto de uma mentira. É claro que a venda do produto também pode ser entendida num sentido mais genérico, não exclusivamente de natureza pecuniária. Um compositor que escreva apenas pensando nos aplausos que vai receber e crie com base em critérios que julga serem os da maioria de seus ouvintes, faz um produto para ser "vendido", e a sua composição é falsa. Assim considerando, o "Kitsch" está estreitamente ligado com o mentir, com o ludibriar, com o iludir para ganhar, com o engôdo. O problema do "Kitsch" não é tanto, portanto, de natureza estética, mas sim ética. Considerando-se a propagação da cafonice no Brasil, e sobretudo nos meios musicais, então chega-se à conclusão que temos sérios problemas de ética! Grande parte daquilo que pode ser facilmente percebido como cafonice pertence à categoria do "Kitsch doce". São obras que procuram ser lindas e "tocantes", apelando para os sentimentos do homem através de emprêgo de meios vulgares. Aqui se enquadram as já citadas gravuras e as imagens de santos de gesso com expressões sentimentais que podem ser encontradas em quantidade nas nossas igrejas, casas de artigos religiosos e em centros de romaria. Trata-se aqui de um problema muito sério, pois diz respeito à religião. Observando-se as nossas igrejas, percebe-se facilmente que, na sua grande maioria, são elas próprias exemplos por excelência de "Kitsch" arquitetônico, escultural e pictórico. O mesmo pode ser dito com relação às músicas nelas executadas. Ora, se há um campo onde não deveria haver o problema ético do "Kitsch", ou seja, a mentira, este deveria ser o da religião cristã, uma vez que Cristo é teologicamente não só o caminho e a vida, mas também a Verdade em si. Se o modêlo mais alto para o homem como criador é o Criador por excelência, cuja obra, a Criação, jamais pode ser "Kitsch", então deveria evitar a mentira, que é campo, segundo a religião, do demônio, o "pai da mentira". A cafonice das nossas igrejas e de sua música revela, portanto, gravíssimos problemas éticos no nosso país, pois diz respeito às mais profundas convicções de grande parte de nossa população e revela que a mentira está instalada nos fundamentos da cultura. Evidente fica este problema também nos nossos cemitérios, onde a dignidade da morte é ferida pelas mais tremendas aberrações expressivas do desejo de representação social das famílias. O "manter as aparências" é o grande domínio do "Kitsch" nas relações sociais. Também fora do campo religioso podem ser encontrados exemplos de "cafonice doce". Tudo que é "bonitinho mas ordinário" cabe nesta categoria. Aqui poderíamos também incluir objetos que imitam artefatos e produtos industrializados do passado, como pequenas panelas de cobre, ferramentas e sinos que se encontram como "souvenirs" em cidades de veraneio ou estâncias, como Poços de Caldas e Campos de Jordão. Aliás, as cidades brasileiras que imitam arquitetonicamente cidades alemães e suíças podem ser consideradas como exemplos gritantes de encenação falsa e de mau gosto, mesmo que apresentem construções de alto valor econômico. Encarnam e são repositórios de "Kitsch". Gravíssima é a importância dessas expressões da mentira no campo político. Chaveiros, canetas, camisetas e outros brindes, assim como os slogans políticos são os mais evidentes indícios de inveracidade. É importante sobretudo salientar que há também um "Kitsch" amargo. Este é uma falsa expressão de seriedade e profundidade. Nela incorre o artista que quer receber a atenção e a admiração de um público sério, profundo e intelectual. Para "vender" o seu produto, cria produtos que aparentam corresponder a estes altos critérios estéticos e que são, no fundo, éticos. As suas obras de artes plásticas, do teatro e do cinema aparentam seguir as mais sérias correntes da atualidade, apresentam-se como profundamente críticas, parecem desprezar as aparências e não querer agradar: são as obras e os eventos que arremedam correntes de vanguarda. O escuro, o preto-e-branco, o enferrujado, os gritos, o trágico dominam. Na verdade, porém, eles enganam aqueles que procuram aprimorar a própria capacidade de julgamento estético. São, por isso, obras duplamente mentirosas. Não são, portanto, na música, só valsas, gavotas e fantasias que, se compostas hoje, corporificam o "Kitsch". Muitas obras que utilizam uma linguagem aparentemente contemporânea podem ser aqui enquadradas. Aqui também é terreno do particularmente perigoso "Kitsch" intelectual, o dos estudiosos que procuram empregar conceitos e formas de argumentação de especialistas de renome. Poderíamos dizer que há todo um "Kitsch" intelectual de literatos que procuram imitar a linguagem de Mário de Andrade. Também é "Kitsch" todos aqueles pseudo-intelectuais que procuram ter tanta fama como um Roger Bastide, Edson Carneiro ou um Carybé e, para isso, só falam de candomblé. Assim como temos que desenvolver a nossa acuidade perceptiva para detectar o "Kitsch" de artefato, precisamos, também e principalmente, sensibilizar-nos para perceber o falso nos produtos intelectuais. A maior dificuldade na discussão do problema daquilo que é ou não "Kitsch" é de natureza estético-histórica. Constata-se que expressões artísticas de épocas imediatamente passadas tendem a ser julgadas negativamente, um julgamento que é então revisto nas gerações seguintes. Este foi o caso, por exemplo, do Gótico e do Barroco. Ambos os termos tiveram por longo tempo uma conotação pejorativa, sendo vistos como denominações de estilos que teriam corporificado o mau gosto. O mesmo caberia a conceitos tais como Manierismo, Gongorismo, "Art Nouveau" e outros. Parece-nos que a discussão desse fenômeno não tem tido a profundidade que merece. Na realidade, temos aqui um problema de fundamental importância na Historiografia. Precisamos lembrar que uma coisa é considerarmos de forma justa e objetiva épocas históricas e suas expressões, o que exige a consideração por assim dizer neutra dos seus próprios critérios, outra coisa é o julgamento de determinados desenvolvimentos e fenômenos, do qual não podemos fugir e que constitui, talvez, um dos objetivos do estudo do passado, pois queremos aprender da História, pelo menos no que diz respeito à nossa própria cultura. Como poderíamos conceituar melhor aquilo que é cafona? E como poderíamos ou deveríamos tratá-lo? Em primeiro lugar, precisamos salientar que este problema não é, de forma alguma, expressão de uma atitude elitista. Não se trata, em absoluto, de querer ser "fino", pois isso já seria, em si, cafonice. Muito pelo contrário: não só a natureza nunca é "Kitsch"; também as culturas indígenas, por exemplo, desde que não "aculturadas", não o são. Poderíamos talvez afirmar que o índio constitui o maior exemplo para nós, brasileiros, que temos tantas dificuldades em não ser "Kitsch". Mas o que diríamos do folclore e da cultura popular em geral? Certas expressões, como a coroação do imperador do Divino Espírito Santo, os muitos cortejos e ternos do nosso folclore, com as suas bandeiras enfeitadas de fitas e flores de papel, a música dos pastorís, e muitos outras expressões tradicionais da nossa cultura poderiam, à primeira vista, ser consideradas como sendo cafonas. Como tais são vistas, talvez, por muitos jovens que procuram sair da estreiteza do ambiente em que nasceram e que, atraídos pelos meios de comunicação de massa, não querem mais participar dos festejos tradicionais. Isso não impede, porém, que para os estudiosos da nossa cultura esses fenômenos representem expressões de uma extraordinária riqueza, verdadeiros monumentos da cultura. Teríamos aqui, portanto, um problema semelhante àquele que se coloca na Historiografia. O estudo o mais possível objetivo de fatos não pode e não deve impedir um julgamento, tendo em vista o presente e o futuro, não pode, porém, ser por este influenciado. Seria até mesmo uma tragédia para a ciência e para o próprio folclore se misturássemos indiferentemente fenômenos de altíssimo valor da nossa cultura popular com certas expressões circunstanciais de "mau gosto". Uma sabedoria ou ciência do povo, - folk-lore - , não pode, em si, ser "Kitsch", pois senão não seria sabedoria. Para termos mais clareza devemos sempre partir do conceito que o "Kitsch" tem a ver com a venda de um produto feito com a intenção de ser vendido e que usa, para tal, de meios apelativos. Ele se relaciona com propaganda, quer seja esta política, religiosa (missionária), artística, ou intelectual. Assim, o "Kitsch" é, por razões naturais, próprio de situações opressivas, quando autoridades e instituições desejam "vender" uma imagem ou produto. Isso demonstram os cartazes e outros meios propagandísticos de regimes autoritários, como, por exemplo, os do Brasil dos anos trinta. O tom patético nacionalista ou social-nacionalista é fácilmente identificável. Exemplos desse tom oferecem as ilustrações de muitas capas de hinos da Revolução de 32 ou de hinos de H. Villa Lobos. Também há um mau-gosto comunista, e as artes soviéticas, sejam de arquitetura ou de pintura social-realista são claramente anacrônicas, apelativas, propagandísticas e desejam influenciar. Como fica aqui evidente, o "Kitsch" pode ser algo altamente perigoso, por ser um veículo da opressão e da manipulação. Como produto a ser vendido, o "Kitsch" pode, porém, apenas desenvolver a sua ação venenosa se for "comprado". Se não for levado a sério, então perde a sua força e perigo, tornando-se ridículo. Esta é a única atitude adequada que podemos tomar perante a cafonice imperante. É inútil querer combatê-la, pois com isso demonstramos levá-la a sério. É isso que muitos desejam, sobretudo aqueles que fazem "Kitsch" amargo ou intelectual. É a única forma, também, de considerarmos de forma justa e não presunçosa certas expressões artísticas do passado e da nossa cultura popular. Na medida em que não "compramos" o produto da mentira, mas sim a desmascaramos, ela deixa de ser mentirosa, tornando-se motivo de riso. Para isso, porém, precisamos não só apurar a nossa sensibilidade de detectar o falso, mas também adquirir uma atitude quase que lúdica. Seria inapropriado dizer que esta atitude seria cínica. Ela é, muito mais, guiada por um espírito de não levar a sério o produto do engôdo, o que significa que este se transforma num brinquedo, num jogo. Com isso, não só desativamos a bomba do "Kitsch", desenvenenando-o, como emprestamos um novo valor ao produto. Ele pode agora ser manuseado e degustado, se bem que não no sentido que os seus autores teriam desejado. Com isso, toda a realidade cafona que nos rodeia torna-se insólita, ridícula, gozadíssima. Não precisamos abolí-la; devemos, sim, pelo contrário, exagerá-la nas expressões! Adquirimos, assim, até mesmo uma qualidade maior de vida, pois esta se torna muito mais alegre. Com isso, não suprimimos nada do nosso passado, nem um possível mau gosto barroco, nem o gosto burguês do século XIX, nem as pomposas músicas de igreja do passado, nem as vulgares músicas de igreja do presente, nem as músicas de salão, nem muitas das pretenciosas produções musicais eruditas do nosso século. Também não precisamos mais demolir as mansões ecleticistas da Avenida Paulista, nem o monumento do Ipiranga... Precisamos, sim, olhá-los com outros olhos, não "engolí-los", mas gozá-los. Sendo o cafonismo um problema mais ético do que estético, temos aqui uma possibilidade única para superarmos situações falsas sem usarmos de meios violentos de combate. Desativar processos não levando-os a sério é talvez a forma mais eficaz de ação. Desnudar: esta é a palavra!
Primeira parte das notas para um ensaio, expostas em encontro do coral da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 1969. Serviram como base para aulas do curso de Estética da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo em 1972. Publicadas em Brasil-Europa &Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: ISMPS e.V. 1999,39-45 ©Todos os diereitos reservados
» zurück: Materialien