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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA ESTÉTICA NO BRASIL (1972)
Antonio Alexandre Bispo
A Estética é uma disciplina complexa e controvertida. Ela pode até mesmo ter uma conotação desqualificativa. De fato, se o termo fosse entendido na sua acepção quotidiana e vulgar, seria até mesmo irresponsável estudá-la no âmbito dos estudos superiores em face dos graves problemas da época, do mundo e do Brasil. Muitos a confundem também como expressão de um esteticismo superficial e ridículo. No decorrer do seu estudo, porém, vamos constatar a seriedade e a importância desta disciplina, apesar de todas as dificuldades que se relacionam com o seu objeto de estudo e com os seus métodos. Não é nova a Estética como disciplina nos cursos superiores do Brasil. Ela surge em currículos de escolas de Belas Artes e de faculdades de Arquitetura e de Filosofia, assim como em cursos regulares ou esporádicos em conservatórios. Falta ainda, entretanto, um estudo da história do pensamento estético no Brasil. Algumas obras publicadas demonstram, porém, a diversidade dos pontos de vista dos autores que a trataram e até mesmo extraordinária subjetividade e arbitrariedade. Citamos aqui, entre os livros já mais antigos publicados sobre a Estética musical em português, o curioso trabalho de Albino Esteves, do Conservatório Mineiro de Música, de título Esthetica dos Sons, Cores, Rythmos e Imagens, publicado no Rio de Janeiro, em 1933. Nos últimos anos, com a integração crescente da música nas universidades, cresceu o interesse pela Estética. Em 1966, Yulo Brandão ministrou um curso de introdução à Estética na Universidade de Brasília, o qual deu origem ao seu livro intitulado Estética (Estudos Breves), publicado por aquela universidade, em 1968. No ano seguinte, a matéria passou a ser obrigatória em todos os cursos das escolas de músicas das universidades brasileiras (Parecer 571/69 do Conselho Federal de Educação). Com isso, surgiu a necessidade de textos para o seu ensino. Este foi um dos motivos que levou Baptista Siqueira, catedrático da Escola de Música da Universidade do Rio de Janeiro, a publicar, em 1970, no Rio de Janeiro, o livro Estética Musical, que ele compreende como um "Ensaio científico". Ele parte do próprio texto do documento oficial, que diz que o objetivo da matéria seria "o gozo das emoções e fruição do imenso tesouro musical acumulado pela humanidade". Nesses termos "gozo" e "fruição", Baptista Siqueira vê a influência de certas correntes do pensamento europeu no Brasil e uma determinação do sistema filosófico no qual a matéria deveria ser tratada. Com a instituição da disciplina "Educação Artística", de natureza polivalente, surgem novos problemas. Não é mais adequado partirmos de considerações feitas do ponto de vista de uma Estética especial, ou seja, da musical. Devemos tratar o assunto dentro de um contexto mais abrangente. Precisamos partir, por assim dizer, de uma Estética Geral. Este é o título de um livro relativamente recente [sem data de publicação] de Evaldo Paulo, Professor em Florianópolis, no qual também estuda a Estética Psicológica. Muitas das publicações sobre o assunto nos parecem estranhamente antiquadas, incapazes de corresponder às exigências do presente e às discussões nos meios criadores e intelectuais. Nos últimos anos, constata-se uma tendência a uma renovação no tratamento de questões que dizem respeito à Estética e que agora passam a ser consideradas sobretudo no contexto das teorias da Informação e Comunicação. Um marco significativo em São Paulo foi o curso "Arte e Comunicação" ministrado por Décio Pignatari, em 1968, sob o patrocínio do Departamento de Cultura do Município. Não podemos também esquecer as discussões a respeito da Estética real-socialista desencadeadas recentemente pela tradução de obras estrangeiras, como a de G. Lukács. Um grupo de São Paulo tem-se dedicado também ao estudo do pensamento alemão do nosso século, em particular de Martin Heidegger e, com isso, da idéia da auto-libertação do Homem com relação a uma entidade transcendental, o que atinge os fundamentos da tradição do pensamento estético. Em geral, a bibliografia brasileira sobre a Estética trata do belo artístico. Nós consideramos esse fato como uma restrição inadequada do campo de estudo da disciplina, capaz até mesmo de levar a mal-entendidos que comprometem a matéria e prejudicam a consideração adequada das artes. Justamente num país como o Brasil, de natureza exuberante, o belo natural não pode deixar de ser considerado. É uma questão de responsabilidade e até mesmo de inteligência, pois oferece uma chance única para a Filosofia no Brasil, que até hoje desempenha um papel tão secundário no quadro internacional. Torna-se necessário, portanto, partir da consideração do conceito de Estética no sentido estrito do termo, ou seja "percepção", e da noção do belo em si, no seu mais alto grau de abstração. Temos de seguir a lógica imposta pela terminologia, se quisermos sair do labirinto esdrúxulo criado pelas contribuições pessoais muitas vezes fantasiosas dos vários autores. Assim, a Estética deve ser considerada como uma disciplina distinta da Filosofia da Arte. Alguns pensadores partem da opinião completamente oposta e dizem que não há Estética, mas sim apenas História da Estética. A lógica diz porém que devemos fazer uma distinção clara: uma coisa é a Estética, outra coisa a consideração das reflexões estéticas através dos tempos e nos diversos países. A complexidade e o caráter controverso da Estética deriva do seu objeto de estudo e do fato de ser considerada ciência e/ou parte da filosofia. O problema fundamental reside na questão: o que é o belo? Uma resposta nos vem rapidamente: não há o belo em si: gosto não se discute! O que é bonito para uns não é para outros, o que é bonito para os índios de uma tribo não o é muitas vezes para um caboclo que ali aparece, e vice-versa. Podemos, é verdade, estudar os objetos que os índios consideram como belos e também o seu comportamento estético. Fazemos aqui então claramente ciência, ou seja, Etnologia ou talvez uma Etno-psicologia. Procedemos aqui de forma consequente e metódica, usando dos procedimentos adequados de caso para caso. No nosso caso particular, estamos na situação feliz de sermos responsáveis tanto pelo ensino da Estética quanto da Etnomusicologia. Preferimos, porém, dizer que a Estética como ciência deveria fazer parte da Antropologia [Cultural e Social]. A questão do belo, de fato, não pode ser tratada apenas sob a perspectiva étnica. Aquilo que é considerado como sendo belo varia também muitas vezes segundo os diversos grupos sociais e culturais não determinados etnicamente. O seu estudo poderia caber, assim, à Sociologia ou, em geral, a qualquer uma das ciências da cultura. O objeto visto como belo, o comportamento e a expressão estética variaram também no decorrer dos tempos; o seu estudo seria objeto de um ramo especial da História. Isto fica especialmente evidente nas transformações das artes através das épocas, e por isso a História da Arte se ocupa particularmente da Estética. Não só a arte, porém, documenta aquilo que foi considerado belo e apreciado estéticamente. Aspectos da cultura que não podem ser considerados especificamente artísticos manifestam transformações de natureza estética no decorrer das épocas e nas várias regiões. A questão da técnica e sua beleza merece ser aqui especialmente considerada. Uma locomotiva do século XIX, por exemplo, que não foi construída com a intenção de vir a ser uma obra de arte, pode hoje nos parecer estéticamente de interesse. Sobretudo a arte do século XX demonstra que a arte pode muito bem se dissociar daquilo que é visto e sentido como belo. Se as obras de arte não precisam necessariamente despertar a sensação de beleza e trazer características que a despertem, a Estética não pode, por definição, dissociar-se do seu objeto de estudo. É, portanto, altamente problemático, sobretudo para o estudo adequado da arte contemporânea, que se trate da Estética em união com a História da Arte. Ela deveria ser estudada, apesar de todas interrelações, como já foi dito, como disciplina em si, independente das Ciências e da Filosofia da Arte ou do ato criador. O tratamento científico da questão do belo no sentido antropológico, por exemplo das sensações e expressões estéticas de um determinado grupo étnico ou sócio-cultural ou de um indivíduo, esbarra num grande problema: a dificuldade de sermos objetivos, a impossibilidade de superarmos totalmente o nosso condicionamento cultural. No nosso caso, estamos, além do mais, numa situação muito especial e que traz implicações ao enfoque que precisamos dar à disciplina. Não formamos aqui antropólogos nem pesquisadores, mas sim professores. Estes lidam ou vão lidar com alunos das mais diversas proveniências étnicas e grupos sociais e necessitam, assim, tentar compreender e valorizar as diversas formas de sensação e expressão estética. Ao mesmo tempo, porém, como educadores, são modêlos e atuam normativamente. Aqui coloca-se, porém, um grave e relevante problema: o que seria normativo do ponto de vista estético? Seria totalmente absurdo impor normas de cunho estilístico, seja do ponto de vista da música, seja das artes plásticas. Não adiantaria muito evitar todo e qualquer tipo de indotrinação consciente, restringindo-se à descrição da diversidade e relativando claramente toda a manifestação de cunho estético, pois continuaríamos a exercer influências inconscientemente, de forma não verbalmente manifesta. Este procedimento colocaria até mesmo em questão a necessidade e o sentido do papel do pedagogo. Creio, portanto, que o mais acertado seria tomarmos consciência de nossos próprios condicionamentos, ou seja das noções e concepções que caracterizam a nossa cultura, ainda que subexistam apenas de forma subliminar. Com a clareza obtida ganharemos também maior liberdade de ação consciente. Conceitos de natureza estética estão intimamente ligados com o Cristianismo que forneceu os fundamentos de nossa formação cultural e impregna ainda decisivamente a nossa sociedade. As expressões da cultura popular de natureza religiosa não podem de forma alguma ser dissociadas dessas concepções. Basta citarmos aqui a idéia do belo que se manifesta nas festas do Divino e de São João ou nas manifestações da Umbanda. Essas idéias sobrevivem, de uma forma ou outra, na sociedade secularizada. Essas concepções cristãs remontam aos primeiros anos do Cristianismo e à Antiguidade. Não precisamos, portanto, entrar direto na discussão filosófica se devemos ou não rejeitar uma tradição de pensamento que implica no reconhecimento da metafísica. Vamos partir de nossa própria cultura, estudar os conceitos que nela imperam ou subsistem e procuremos os seus fundamentos. Com a consciência que adquirimos podemos, então, a nosso próprio critério, assumir uma posição e direcionar as nossas ações.
Primeira parte da aula inaugural do curso de Estética como disciplina da Licenciatura em Educação Artística de natureza polivalente da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo em 1972. Publicado em BrasilEuropa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: ISMPS e.V. 1999, 17-24. ©Todos os direitos reservados
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