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PERCEPÇÃO DA METRÓPOLE E O ESTUDO DA CULTURA POPULAR NO EXEMPLO DE SÃO PAULO (1972)
Antonio Alexandre Bispo
No conceito de cultura de "expressão espontânea" empregado por Rossini Tavares de Lima e base da metodologia seguida na Escola de Folclore do Museu de Artes e Técnicas Populares de São Paulo salienta-se que o objeto de estudo da Ciência do Folclore é a cultura do homem "dos campos e das cidades". A inclusão expressa da palavra "cidade" nesse conceito é particularmente importante. Quando se ouve a palavra "folclore", pensa-se quase que imediatamente em tradições que sobrevivem sobretudo nas zonas rurais e afastadas. Muitos dos pesquisadores, quando se dedicam ao estudo do folclore nas cidades, procuram também quase que só resquícios destas mesmas expressões tradicionais da cultura em bairros afastados e periféricos. Por mais importantes que sejam estes valores culturais, o Folclore como ciência, entendido no sentido amplo do termo, como o é segundo essa escola de pensamento, necessita considerar também as expressões culturais originadas e/ou determinadas pelo processo crescente de urbanização. Na Arquitetura e Urbanismo tem-se discutido o conceito de cultura "folk". No campo da pesquisa da música, fala-se também muito em "música rural" e "música urbana". Essa distinção entre o rural e o urbano nem só não é fácil, uma vez que não podem ser bem delimitados e a urbanização tem uma natureza processual, nem é suficiente. Para uma necessária renovação das ciências culturais temos de dar atenção sobretudo ao fenômeno da metropolização. Já em 1933, Samuel Harman Lowrie deu-nos, com o seu artigo "O elemento negro na população de São Paulo", publicado na Revista do Arquivo Municipal XLVIII, uma contribuição ao estudo da cidade sob a perspectiva étnica, ou melhor, etno-sociológica. Em 1941, Oscar Egydio de Araújo tratou de outros aspectos étnicos da urbe no seu artigo "Latinos e não latinos no município de São Paulo", publicado na Revista do Arquivo Municipal LXXV. Florestan Fernandes estudou, no seu livro Folclore e Mudança Social na cidade de São Paulo, publicado em São Paulo, em 1961, alguns dos aspectos sociológicos da dinâmica urbana e suas implicações para o estudo do Folclore. De 1964 é o livro Imigração, urbanização e industrialização, de Manuel Diegues Júnior. Creio, porém, que vários outros aspectos do complexo fenômeno metropolitano poderiam ainda vir a ser estudados sob diferentes perspectivas e métodos. Um conceito de Folclore que acentua o aspecto da espontaneidade da expressão cultural parece-me particularmente adequado para aumentar a sensibilidade do observador e sua capacidade de apreensão de diferentes formas de percepção da metrópole, os seus múltiplos universos culturais e as suas sub-culturas. Todos nós, que vivemos em São Paulo, sabemos que a metrópole muito difere de uma cidade do interior. Essa diferença não diz respeito apenas às dimensões da cidade. A metrópole agrega grupos populacionais provenientes das mais diversas regiões do país e de outras nações, não ligados entre si por raízes e uma história comum. Critica-se muito que no complexo metropolitano não se encontra o espírito de vizinhança de uma cidade menor, onde todos se conhecem. Assim o homem se isola e vive anônimo. Não deveríamos, porém, ver apenas o aspecto negativo da metrópole. A anonimidade traz também maior liberdade de vida, possibilita outros tipos de interrelacionamento pessoal e social, outras formas de solidariedade, outras formas de comunidades, produzindo também outras expressões culturais. Resultam micro-mundos culturais, nem sempre delimitados espacialmente, mas sim por rêdes de contactos sócio-culturais. Vamos nos dedicar, hoje, porém, apenas a um aspecto, ou seja, à questão da "leitura" da metrópole, da sua percepção, ou melhor, de suas múltiplas percepções. Desenvolvimento do Tema, Extensão e Limitações Esta conferência foi preparada, na sua maior parte, com bases em pesquisas realizadas no decorrer dos anos de 1971 e 1972. Utilizamos, entretanto, observações e dados obtidos em pesquisas anteriores. À medida que o trabalho foi sendo desenvolvido, muitos dados, apesar de recentemente colhidos, mostraram-se claramente superados. Pela própria natureza do trabalho, é ele inacabável e de proporções inatingíveis. Além do mais, a cidade de São Paulo está sujeita a um rítmo tão intenso de contínuas transformações, o que tornam obsoletas as observações já a partir do seu registro. Em linhas gerais, o estudo parte de dados colhidos em entrevistas com elementos da população e observações pessoais em praticamente todos os bairros e vilas da cidade. Foram entrevistados numerosos choferes de táxi, feirantes, vendedores ambulantes, donos de bares, empórios, e representantes de outras profissões. Além disso foram utilizados formulários em dezenas de grupos escolares, atingindo-se um total superior a 3.000 crianças. Informações curtas de fiéis, fregueses de lojas, de passantes, foram colhidas em momentos significativos: concentrações, feiras, agrupamentos, reuniões, etc... Apesar da tentativa de se registrar um número considerável de informantes, trata-se de uma porcentagem irrisória e irrelevante em face da população da cidade. Não é possível, portanto, a aplicação de uma metodologia adequada do ponto de vista estatísco no tratamento do tema. Por essa razão, foram excluídas desse estudo as tabelas comparativas dos informantes. O objetivo primordial deste trabalho é tentar levantar o problema e mostrar a necessidade de um estudo "folclórico" das diversas esferas culturais existententes na metrópole. Por mais que nossos estudiosos do assunto afirmem a extensão da aplicação do conceito dessa ciência, continuamos, como já me referí, a observar o interesse dos folcloristas quase que exclusivo dirigido a fatos ligados a contextos externos ao processo de metropolização, ou, no máximo, a "sobrevivências" dentro da metrópole. Tentamos demonstrar, nesta conferência, o enorme campo que se abre ao estudo, dentro da nossa própria cidade. "Folk"-leitura da cidade Partindo do princípio de que o homem, como condição de existência, nasce e vive articulando-se com as coisas ao seu redor, chega-se à conclusão que a organização do espaço é um dado indiscutível da vida. Mesmo as atividades abstratas pressupõe a localização do indivíduo. O desenvolvimento interior do homem não supera a impossibilidade de um desligamento da realidade material. É estabelecida uma relação mútua: o homem é fruto do espaço no qual se desenvolve e ao mesmo tempo age continuamente sobre o mesmo espaço. A essa relação até mesmo estaríamos tentados chamar de "cultura". Como um homem de nossas ruas vê a cidade? Excluindo o aspecto de subjetividade que encerra a questão, acreditamos que a resposta mais aproximada pode ser dada através do estudo do meio em que tal homem vive e se relaciona. O ambiente sócio-cultural e físico do lugar em que mora, do grupo familiar, dos amigos, vizinhos, é condicionante, ao nosso ver, fundamental da maneira de encarar a cidade. Além do aspecto sociológico, o etnológico é de importância. Grandes contigentes humanos, das mais diversas procedências, se deslocam, a todo o momento, para a capital ou dentro dela. O "velho fundo" paulista, a população cuja estrutura básica remonta ao processo colonizador dos séculos XVI e XVII, atinge hoje uma proporção insignificante nas dimensões metropolitanas. Só as camadas mais pobres, formadas na sua maior parte por negros e mulatos, cuja formação remonta aos séculos XVII e XVIII, ainda constituem consideráveis parcelas da população da cidade. Mantendo fortes vínculos sócio-culturais, ocupam bairros relativamente bem definidos, por ex. Vila Brasilândia, Vila Santa Maria e adjacências. São, portanto, elementos de uma minoria populacional, os habitantes que sentem as transformações urbanas em relação ao passado cultural da urbe. Obviamente, os espaços, mesmo na área central da cidade, não podem assumir, para a maioria da população, significado histórico e, consequentemente, valor como tal. Este desligamento cultural da cidade com o seu passado sòmente pode ser sentido mais de perto por elementos de certas camadas sócio-culturais, porque receberam de forma espontanea, através de tradições familiares, informações orais e relatos de avós, parentes e conhecidos, reflexos da cidade colonial e imperial dos séculos XVIII e XIX, ou pelos estudiosos e historiadores, que vão descobrindo, com sucessivas surpresas, a fisionomia perdida. São esses os elementos que reclamam, hoje, o fato de São Paulo ser uma cidade "despersonalizada". A grande massa popular, não tendo vivenciado a "personalidade" perdida, confere, simplesmente, outros valores à realidade. Vamos considerar, agora, brevemente, algumas camadas populacionais oriundas de processos imigratórios da segunda metade do século XIX. Já na sua terceira geração, os descendentes de imigrantes italianos, que se concentraram, na sua maioria nos bairros do Brás e Bela Vista, também têm condições de experimentar uma sensação de "desligamento cultural". Esses antigos núcleos de fixação desses imigrantes tornaram-se fortemente caracterizados nos primeiros anos do nosso século. Apresentavam e apresentam, ainda, uma vida própria, inclusive com significativos fatos folclóricos, frutos em parte de contactos com grupos provenientes de outras partes da Europa. Também os habitantes desses bairros possuem um prisma determinado de visão da cidade. E, à medida que esses bairros se transformam, ocasionam também sensações de desenraizamento e ondas de saudosismo nessa já quarta geração de descencentes dos primeiros imigrantes. Mas precisamos notar que a perspectiva aqui é totalmente diversa dos grupos relacionados com o processo colonizador dos séculos XVII, XVIII e XIX. Os outros grupos de imigrantes, de quase todas as nacionalidades, principalmente japoneses, alemães e de povos da Europa Central, povos do mundo árabe e de judeus, de complexa procedência, ainda nas primeiras fases do processo aculturativo, muitas vezes ocupando bairros "fechados" na estrutura urbana, vêem a cidade de diferentes pontos de vista, a partir da perspectiva condicionada pela sua área de vida e atuação: japoneses (Liberdade e Suzano), coreanos (Rua Tabatinguera), árabes (Rua 25 de março e adjacências), judeus (Bom Retiro), alemães (Santo Amaro), húngaros (Vila Ipojuca), lituanos (Vila Alpina), norte-americanos (Chácara Flora), etc.. O grupo mais recente, mais numeroso e constituindo a camada mais pobre e sacrificada da população, é o da "mão de obra" da metrópole, os imigrantes provenientes do próprio Brasil: os nordestinos. Ocupando áreas bem caracterizadas, quer pela ocupação territorial quer pelos costumes e práticas sócio-culturais, cercam, pràticamente, toda a cidade de São Paulo, distribuindo-se através dos subúrbios e bairros periféricos: Osasco, Barueri, São Miguel, Campo Limpo, etc. Nesse complexo sócio-cultural desenvolveram-se e desenvolvem-se processos de aculturação, de adaptação, de assimilação, de integração, de segregação e outros. Além do mais, precisamos considerar a contínua migração interna na metrópole, o que tece uma rede às vezes indecifrável de contactos e transformações. Folk-Zoneamento Torna-se necessário, primeiramente, esclarecer o que entendemos por "zoneamento" popular. De fato, distinguimos, na prática, dois prismas de compreensão da cidade: um, entendendo a cidade racionalmente, de cima, vista no sentido de uma planta de projeto, próprio a planejadores, administradores, arquitetos e urbanistas, o que poderíamos denominar de "erudito", outro, o do habitante, imerso durante toda a vida na cidade, possuindo uma visão "de dentro", guiando-se por conhecimentos quase que físicos no emaranhado da rede urbana, o que poderíamos denominar de "popular". Na verdade, deveríamos falar de concepções de zoneamento em número indeterminável: um zoneamento do pipoqueiro, um zoneamento do vendedor de laranjas, um da vendedora de produtos de beleza, etc.. Nesse caso, assume papel importante aquilo que chamaríamos de um "táxi-zoneamento", ou seja, a compreensão das zonas da metrópole sob a perspectiva dos choferes de praça. Esses choferes, vivendo continuamente cruzando os vários pontos da cidade, possuem dela um conhecimento global, prático e profundamente sentido e carregado de valores. Agindo através dos mais variados critérios, tais como trânsito, número de passageiros, nível sócio-econômico e segurança individual, podem, perfeitamente, idealizar uma divisão da rede urbana. Foram realizadas, assim, entrevistas com vários choferes, que foram interrogados a respeito das direções que aceitavam ou não, das regiões da cidade que evitavam e por que razão, de quais as melhores horas do dia nos diversos bairros, do número de "partes" em que poderiam dividir a cidade, etc. Em tempo: foi evitado o emprêgo do termo "zona", pois esta palavra, popularmente, tem o significado de local de prostituição. Inquirido a esse respeito, por exemplo, um chofer respondeu: "Aqui não teem zonas boas não! Não dá para dividir a cidade em zonas." (!). A título de exemplificação, citamos uma dessas divisões fornecidas por um chofer de táxi: Do Parque do Estado até a Avenida 9 de Julho com a São Gabriel; do ponto anterior até a Avenida Francisco Matarazzo; daí até a Brás Leme com a Rio Branco, dessa Avenida até a Ataliba Leonel, daí até a Radial Leste. Evidentemente, o interesse reside muito mais na caracterização de cada região. Ora, se uma divisão subentende a existência de elementos homogêneos em cada zona, o conhecimento desses elementos é fundamental para um estudo da compreensão da cidade por um indivíduo ou grupo. Em geral, pode-se chegar a conclusões sobre as perspectivas de sensação de cada zona, através dos valores a ela emprestados. Por exemplo, citamos algumas das opiniões mais generalizadas de choferes de táxi: - "Não aceitar passageiros para o fundão ou barroca." Esses termos caracterizam nessa linguagem particular bairros situados além de Vila Brasilândia ou de Santo Amaro. - "Santana é bairro péssimo" (Provavelmente devido ao trânsito). - "Não ir à Mooca, senão volta vazio" (Sendo bairro praticamente industrial, torna-se difícil conseguir passageiros de retorno à cidade, pois o operariado se desloca diretamente aos subúrbios e, certamente, nunca de táxi.) É comum ouvirmos a afirmação: "A Mooca só tem duas ruas". - "Os melhores bairros são: Lapa, Jardins, Santo Amaro" (Devido ao mais alto poder aquisitivo dos moradores). - "Aos domingos, e só aos domingos é bom São Miguel, por causa das feiras". - "Fugir dos lugares onde tem muitos japoneses dirigindo". - "Quando a gente pega uma boca vai até o fim do dia; por isso, é bom cair no aeroporto logo cedo". Em linhas gerais, através dos dados obtidos, poderíamos chegar a uma síntese: A) "Buraco", "fundão", "grota", "barroca", "fim do mundo", etc. Com essas denominações, caracterizam os choferes os locais que lhe inspiram medo. Também os vendedores manifestaram opiniões similares. Falam de "concentração dos piores elementos da capital", de que "muitos são serventes de pedreiro que trabalham três horas por dia e depois vão roubar ou caçar passarinhos", de que "não dá para ir à noite, pois levam o carro e as calças". Esses bairros são, por exemplo, os limítrofes à Serra da Cantareira e concentram grande contigente de pretos na cidade. Pode-se, portanto, constatar preconceitos raciais, ainda que inconscientes. Característica cultural própria dessa região é a existência de "feirinhas" de venda de frutas, verduras, pescado de água doce e até de porcos. Funcionando diariamente, ao cair da tarde, quando os trabalhadores chegam do serviço, têm seus dias de maior agitação aos sábados e aos domingos até às 14 horas. Com os artigos expostos sobre panos e caixotes espalhados nas calçadas, atraem grande quantidade de pessoas. Essas feiras emprestam a esses bairros um colorido e uma agitação que os caracterizam. Foram localizadas "feirinhas" não regulamentadas, em vários pontos, como na esquina da Rua Parapuã com a Rua Lázaro Amancio de Barros, na Av. Penha Brasil, no Jardim Peri-Peri Novo e no ponto final do ônibus Morro Grande (permanente). Nessa região podemos salientar também o aspecto particular da ocupação do solo, com a profusão de barracos de madeira no meio da vegetação. São os bairros que mostram ainda considerável cobertura verde, ainda que em fase de deterioração. Salientamos, também, as concentrações de lavadeiras nas bicas do Morro de Santa Therezinha, ocasiões de contacto entre habitantes e de concentração de crianças. B. "Mato". Na linguagem particular dos informantes, "mato" designa os bairros afastados, mas já com melhor "ambiente" que os citados no ítem A. Como principal atividade de lazer vamos encontrar o "parque de diversões" ou "parquinhos". Com um mundo próprio, local de diversões, encontros, pontos de referência e de passatempo, é o parquinho o local de fim de semana de considerável parcela da população. Encontramos também campos de futebol de várzea, feiras e pontos de aglomeração. Aliás, a instituição do "footing" é, ainda, o grande acontecimento de tais bairros. C. "Bairro velho". Com essa denominação, encontramos os bairros que rodeiam os polos (centros) secundários da cidade de São Paulo: Penha, Santana, Santo Amaro, Pinheiros, Lapa. A principal ligação desses bairros já é feita diretamente com o centro, ao contrário das zonas anteriores, que se polarizam em torno de "fins de linha" de ônibus ou término da rua asfaltada. Nesses bairros, os pontos de aglomeração se fazem, geralmente, em torno das grandes igrejas, principalmente aos domingos. Já podemos encontrar cinemas de bairro, vulgo "pulgueiros". Também completam o equipamento de lazer parquinhos, campos de várzea e locais de tiro ao alvo. D. "Bahia", "Norte". São os subúrbios ao longo da Estrada de Ferro Central do Brasil. Apresentam concentração principal em torno de feiras aos domingos pela manhã, sobretudo em torno das estações, com vendedores de fumo em corda, cocos, artigos nordestinos, parada de charretes, etc.. Há grande quantidade de casas comerciais do "Norte", que vendem artigos e alimentos próprios das regiões nordestinas do país. E. "Bonito", "ruas retas, tudo arrumado", são algumas das caracterizações dadas aos bairros de classe média, resultados de loteamentos realizados na sua maioria nos anos vinte e trinta. Apresentam urbanização quadriculada, predominância residencial, abundância de equipamentos sociais tais como clubes, parques infantís, praças. F. "Chique", "grã-fino", são caracterizações de bairros abertos na década de 30 e 40 sobretudo pela Companhia City dentro da concepção "Cidade-Jardim", com ruas curvas em labirinto, grandes jardins e arborização de rua e habitados por moradores de nível econômico mais elevado. Pela arborização são bairros que apresentam ruas com pouca iluminação à noite, o que inspira medo a passantes e a choferes. G. "Bairro velho de fábricas" são os bairros industriais em torno dos eixos de ferrovias e dos rios. São zonas completamente mortas em dias feriados, apresentando o seu maior ponto de concentração nas horas de almoço dos dias de trabalho, quando centenas de operários sentam-se às calçadas e em torno dos bares de esquina. H. "Favelas". Espalhadas em vários pontos da cidade, ocupam em geral terrenos baldios ou de domínio público. Mostram especial interesse para o estudo de um urbanismo espontâneo, por assim dizer folclórico, pela particularidade do arruamento e da denominação das ruas. Do ponto de vista arquitetônico, são dignas de serem estudadas devido à improvisação de moradias, em geral com materiais recolhidos do lixo. Possuem vida própria, cidades dentro da cidade, dificilmente articulando-se com os bairros circunvizinhos. Por terem sido alvo de estudos específicos, não nos ocuparemos mais pormenorizadamente com este tema nesta exposição. Folk-setorização Numa cidade cuja distribuição de atividades não foi e não é planejada, no seu todo, como São Paulo, a setorização se guia por critérios absolutamente espontâneos e do maior interesse para estudos da cultura popular. O importante, neste caso, é a concentração de atividades ou serviços realizada de forma não dirigida. Com um princípio em geral aleatório, a concentração intensifica-se por si, aumentando as possibilidades de uma pontuação urbana, na familiaridade do homem com o espaço. Além de colaborar ativamente para o enriquecimento visual do ambiente, por meio de anúncios luminosos, cartazes, etc., a concentração de determinadas atividades comerciais possibilita ainda os usuais "passeios para ver vitrinas", fundamentais ao lazer de determinados grupos populacionais. Indicamos, a seguir, as principais concentrações observadas: Casas de móveis: localizadas principalmente nos vários centros regionais, como Rua Teodoro Sampaio (Pinheiros), Lapa e Penha. Também são famosas as casas de móveis do Brás. A "cidade dos móveis", São Bernardo, atrai numerosos visitantes aos domingos pela manhã. Vestidos de noiva e enxovais: antigamente eram casas concentradas na Rua Santa Efigênia, encontrando-se hoje sobretudo no Brás, na Rua João Teodoro, na Avenida da Liberdade, na Rua 12 de Outubro e na Penha. Fios e Linhas: Ladeiras Porto Geral e Constituição e, antigamente, Praça Carlos Gomes. Doces e Balas: Rua Dr. Carlos de Campos no Parí. Bancos: Rua XV de Novembro, Rua Boa Vista e Rua Álvares Penteado. Artigos religiosos: Região da Praça João Mendes, da Sé, na rua Quintino Bocaiuva. Hotéis: claramente concentrados são aqueles de baixa categoria, na "Boca do Lixo", região da Rua Vitória e da Rua Conselheiro Nébias. Comércio atacadista e cereais: Zona do Mercado, Rua Paula Souza, Rua Santa Rosa. Pastelarias: Vale do Anhangabaú e Avenida São João, sobretudo do lado direito. Ferro velho de automóveis: Rua Piratininga e adjacências. Os numerosos "ferros velhos", comuns alguns anos atrás, praticamente já não existem nos bairros centrais. Presentes: Rua Cincinato Pomponet na Lapa, e em Pinheiros. Jóias: Praça da República e Avenida Ipiranga. Flores: Largo do Arouche e Cemitérios. Cantinas e Restaurantes italianos: Bela Vista, Rua 13 de Maio e adjacências. Farmácias homeopáticas: Praça da Sé e adjacências. Restaurantes alemães e casas de chopp: Av. Ibirapuera. Tintas: Praça Carlos Gomes e Rua Riachuelo. Artigos elétricos: Rua Florêncio de Abreu e Av. da Luz. Grandes lojas populares: Rua Direita e Rua José Bonifácio. Sorveterias: Praça Marechal Deodoro, Rua Rafael de Barros. Bijouterias: Rua 25 de março. Roupas feitas por atacado: Rua José Paulino e Rua dos Italianos. Roupas finas, de moda: Rua Augusta e adjacentes; centro comercial Iguatemi. Tapeçarias e cortinas: Rua Sebastião Pereira e Praça Marechal Deodoro. Calçados: Rua São Bento, Barão de Itapetininga, Mooca, Vila Bertioga. Roupas usadas: Rua do Seminário (conhecidos "brechós" e "prego"). Turismo: Avenida São Luís. Artigos e restaurantes orientais: Liberdade. Materiais de construção: Avenida Casper Líbero e Rua Florêncio de Abreu. Lustres: Rua da Consolação. Galerias de arte: Rua Vieira de Carvalho. Cinemas: Avenida Paulista, Rua da Consolação, Avenida Brigadeiro Luís Antonio. Antiga setorização, hoje com cinemas frequentados pelas camadas mais pobres da população: Av. Ipiranga, Largo do Paissandú e ruas vizinhas. Referenciação urbana e pontos de encontro A referenciação urbana é um fato de importância no estudo da compreensão popular da cidade. Com o sentido básico de orientação, o ponto de referência tem de ser, dentro de um consenso médio, algo que seja percebido facilmente. Caracteriza, portanto, espacialmente uma região. 1) Monumentos e obeliscos. Entre os monumentos que funcionam como pontos de referenciação urbana, citamos os seguintes, com os respectivos cognomes populares: "Bonecão da Santo Amaro": Estátua do Bandeirante Borba Gato na Av. Sto.Amaro. "Vai que é leve": Grupo escultural "As Bandeiras" de Brecheret, no Parque Ibirapuera. "Bolo de Aniversário": Monumento da Independência no Ipiranga. "Levanta que eu ajudo": Estátua "O Beijo" (Rodin) no Largo São Francisco. Estátua do Duque de Caxias, na Praça Princesa Isabel, "que está sempre resfriada, porque perdeu o chapéu". Obelisco do "Piques": Obelisco da Praça das Bandeiras, também conhecido como "Mastro do Piques". É interessante notar que através dos apelidos, anedotas e gírias, o povo exerce uma crítica, quer social, quer artística. Os obeliscos, em particular, tão importantes na história paulista do século XIX, recebem, quase sempre, uma denominação ligada a símbolo fálico. 2) Viadutos e túneis. Citamos os seguintes exemplos com as respectivas denominações populares: "Minhocão": Via elevada Presidente Costa e Silva. "Minhoca": Viaduto da Praça 14-bis. "Minhoquinha" ou "Pulo do Gato": Viaduto na Praça das Bandeiras. "Toca do Urso": Galeria Prestes Maia na Praça do Patriarca. "Buraco do Adhemar": Passagem subterrânea no Anhangabaú. Também neste caso o anedotário é grande, geralmente de cunho pornográfico. Histórias e lendas também podem ser relatadas, como as "almas do Chá", que podem ser vistas, como dizem, do viaduto do mesmo nome (almas de pessoas que se suicidaram). 3) Capelas e cruzeiros. Os cruzeiros, de grande significado como pontos referenciais no São Paulo do passado, perfazem, atualmente, poucos exemplares. Um exemplo importante de ponto de referência é o cruzeiro da Vila das Palmeiras e o do Taboão da Serra. As capelas, quase todas abandonadas, não tendo mais função religiosa, servem quase que exclusivamente como referenciais. Podemos encontrar um número considerável de capelas na região do Tremembé. Também capelinhas para pessoas falecidas, bem como cruzes à beira de antigas estradas funcionam como dados referenciais (Estrada do Mandí, Campo Limpo, Juquerí, etc.). 4) Edifícios. Alguns edifícios, quer pela forma, pela dominância ou valor cultural, conseguem impor-se na massa amorfa das construções urbanas. Alguns exemplos: "Martinelli: Edifício América, na Av. São João. "Treme-treme": Edifício com muitas prostitutas na Praça Júlio de Mesquita. "Balança mas não cai": outro edifício com muitas prostitutas na mesma praça. "Cogumelo": Pavilhão Lucas Nogueira Garcez no Parque Ibirapuera; "Capacete": Planetário. 5) Empórios e mercearias. Os velhos empórios vão desaparecendo, com suas prateleiras envernizadas, balcões de mármore e assíduos frequentadores. Sempre desempenharam e desempenham importante papel na vida dos bairros. Em geral o nome do dono é conhecido por todos e, não poucas vezes, é o "homem de confiança" das senhoras, aquele que conserta ferro elétrico, guarda recados e correspondência, fica com a chave de casas à venda e assim por diante. Reunem ainda os velhos moradores do lugar em intermináveis conversas que abrangem desde política até problemas de vizinhança. Muitos dos produtos oferecidos guardam também marcas por assim dizer folclóricas: cebolinhas, batatinhas, amendoins, tremoços, ovos coloridos (azuis e verdes pintados com tintura de papel de seda e os vermelhos a partir de serragem), além dos aperitivos: pinga com catuaba, pinga com ipê roxo, com peroba, com arruda, além dos populares nomes de "rabo de galo", "meia de seda" e "véu de noiva".Nos bairros periféricos conservam ainda importância na vida da comunidade. É o caso do "vendão" ou "venda do Morro" na Vila Santa Therezinha (Vila Brasilândia). 6) Bares. Os bares são, ainda, os principais pontos de encontro da cidade. Mesmo em zonas de "barzinhos" ou lanchonetes de moda, sempre encontramos bares comuns, de esquina, quase todos com o mesmo tipo de ambiente. Vale, como exemplo, os bares de esquina da Rua Augusta. Em geral, os bares agregam grupos de "bebuns" ou "mascotes" em discussões e jogos de palitinho e dominó. Nos arrabaldes, quase sempre completam-se com bilhar e, principalmente em tempos mais recentes, com o pebolim. Também subsistem jogos de sorte, de confecção caseira, onde após a escolha do número, fura-se um cartão e obtém-se um prêmio, que pode ir desde um simples lápis até bonecas. A televisão, tão comum em bares até pouco tempo atrás, tendem a desaparecer, salvo em dias de grandes jogos de futebol. 7) Padarias. As panificadoras adquirem um significado social e cultural totalmente diverso daquele dos bares. Sempre com grande movimento, não permitem a cristalização de grupos de conversa. Constituem, entretanto, os grandes pontos de referência em muitos bairros. Poderíamos talvez até dizer que a padaria é uma espécie de marco indicador de distância. Basta verificarmos a quantidade desses estabelecimentos que são denominados por meio de números, em particular naquelas localizadas à beira de antigas estradas: Padaria 1200 (Vila Santa Maria), Padaria 1900, Padaria 1000, etc. Outras padarias e confeitarias, tradicionais na vida paulistana, funcionam também como pontos de referência e encontro: "Formosa" na Rua Formosa, "Ayrosa" no Paissandú, "Santa Teresa" na Praça João Mendes. 8) Pontos de bonde (resquícios). Os bondes marcaram profundamente a cidade. Conhecia-se cada um por número e pelo tipo de veículo, sabia-se qual era o bairro servido: os "abertos", pequenos e grandes, os reboques (famosos "cara-dura") e os fechados ("camarões"). Os "camarões de palhinha" eram reservados para os bairros de classe mais alta e havia o bonde operário, verde, fechado, correndo duas vezes por semana, de manhã e à tarde. Alguns lugares, por qualquer motivo especial, ficaram mais fortemente marcados. É o caso dos trechos com trilho único, onde havia sempre bondes à espera do sinal luminoso (ex. Heliópolis no Ipiranga e Vila Maria), ou pontos de chave manual, o que exigia a parada do veículo para a mudança de direção. Também é o caso dos fins de linha, que reuniam "limpa-trilhos", cobradores, motorneiros, fiscais, como, por exemplo, a Praça da Sé, famosa pela "rendição" (troca de funcionários). Alguns desses locais guardam até hoje os ares da convivência de meio século da cidade com esse tipo de transporte. É o caso das estações, até hoje utilizadas como pontos de referência: Estação do Brás, da Glete, da Vila Mariana, etc. Também é o caso das paradas, como o abrigo da Praça João Mendes, da Praça do Correio e o da Praça Clóvis Bevilacqua, que continuam a reunir velhos funcionários em conversas saudosistas. 9) Pontos finais de ônibus. Um fenômeno semelhante ao descrito pode ser constatado com relação ao serviço de ônibus, se bem que não tão intensamente. Conhece-se motoristas, cobradores e veículos, estes com todas as características da expressão espontânea popular: enfeites de vidro, imagens de santos, fotos, coberturas coloridas de banco e de direção. Normalmente, os ônibus chegam até o centro do bairro ou término da via pavimentada. Nesses locais, com alguns veículos parados, quer na casinhola da companhia ou em algum bar, os motoristas e os cobradores se reunem em discussões e conversas. Os usuários passam, assim, a tomar parte dos problemas da empresa, dos veículos e das rixas dos funcionários. 10) Igrejas. Algumas igrejas constituem esteios das manifestações do catolicismo popular. Do ponto de vista do estudo da cultura popular assumem, assim, grande significado. A preferência, ou melhor, o carinho e a fé por determinada imagem, o costume de ajoelhar-se sempre em determinado canto, a possibilidade de cuidar de altares, enfeitar, arrumar, limpar, criam uma sensação de intimidade, um relacionamento profundo e secreto com o espaço. E tais lugares, ao mesmo tempo públicos e particulares, usados e sentidos muitas vezes por contínuas gerações, são envolventes. Todas as pessoas indagadas foram unânimes em afirmar que "saem diferentes" da igreja. Não poderíamos supor que,- além do fator puramente religioso ou psicológico -, o espaço, sentido no seu vínculo com o ambiente tradicional, despertaria por momentos a consciência de uma ligação com a terra? Concretizando, citamos as principais igrejas que apresentam grande significado para o estudo da cultura popular: Igreja das "Almas" ou dos "Enforcados", no Largo da Liberdade, pela grande quantidade de velas continuamente ali acesas; local frequentado inclusive por umbandistas, que o consideram rodeado de almas sofredoras. Várias estórias e lendas, muitas delas relacionadas com o episódio do enforcamento do Chaguinha no século XIX, constituem rico material folclórico. Igreja dos Aflitos, também na Liberdade; local que impressiona, particularmente pelo número de velas e pela grande frequência, notadamente às segunda-feiras à noite. Igreja da Boa Morte, onde se pode observar o culto a determinadas imagens, como por ex. à do Jesus no Horto e Nossa Senhora da Boa Morte. Igreja da Penha, com sala de milagres, responsável pela caracterização desse bairro como centro de romarias. Até hoje são comuns as promessas de "ir à pé até a Penha". Igreja de São Judas Tadeu, também outro ponto de peregrinação dentro da cidade, notadamente no dia 28 de cada mês. Igreja de São Gonçalo na Praça João Mendes, com grande número de imagens veneradas no corredor lateral, principalmente uma de São Miguel Arcanjo e outra São Jorge. Há lendas e estórias a respeito de um futuro incêndio dessa igreja. Lembramos ainda outras igrejas: a da Freguesia do Ó, a de Santa Isabel, a de Santo Antonio da Praça do Patriarca, a de São Francisco, a de Santa Efigênia. Como exemplificação da importância de tais características associadas às igrejas, profundamente ligadas ao substrato paulistano, salientamos o fato de uma senhora, que mora na Vila Esperança, vir visitar diariamente todas as igrejas do centro, o que faz há anos. Levanta-se às cinco horas, assiste a missa das sete, visita o Rosário, a de Santo Antonio, a de São Gonçalo, a de São Francisco e acaba por dar uma "olhadinha" no "seu Santíssimo" na Santa Efigênia. Seria o caso também de se fazer um levantamento das igrejas "de casamento" e que servem também como objetivo de passeios dominicais. É o caso da Igreja da Penha, onde o ditado popular, calcado na realidade, diz "que se faz fila para casar"; a Igreja do Coração de Jesus e a de Nossa Senhora Auxiliadora, "sonho de toda a moça casadoira" dos bairros de além-Tietê (Vila Santa Maria, Casa Verde e outros), e as igrejas motivadoras de grandes cortejos nupciais: Imaculada Conceição, Santo Antonio do Parí, Santa Teresinha da Rua Maranhão, etc. Nem todas as igrejas possuem "santos milagrosos" e, consequentemente, "casas de milagres", "pagadores de promessas" e outros claros indícios de um maior interesse folclórico. Mas nem por isso deixam de exercer um papel de importância no viver da cidade. É o caso dos templos que recebem apelidos populares: Igreja da Saúde, "Bolo de Noiva" ou "Castelo de Areia"; Igreja de Santa Isabel, "Caramelo"; Igreja de São Domingos, "Pombal das Perdizes". 11. Centros de Umbanda. Muito maior do que imaginamos é a importância sócio-cultural dessas casas. Espalhadas por toda a metrópole, são locais onde também se desenvolvem relações de vizinhança: todos os problemas são abertamente tratados e procura-se identificar, na rede de contactos humanos, as pessoas responsáveis por determinadas complicações familiares e de saúde. Não poucas vezes substituiram a igreja na organização de romarias e festas, como, por exemplo, as grandes romarias organizadas pela Dna. Maria do Campo Limpo, com a sua "igrejinha" dedicada a São Tarcísio. É importante salientar, também, a preferência, por parte de tais centros, no uso de certos tipos de espaço: determinadas igrejas católicas, certas encruzilhadas, certos pontos geográficos, como a antiga pedreira do Jaguaré, ou a pedreira do Jardim Taboão, perto de Cumbica, são locais preferidos para "despachos" e "trabalhos". 12. Outros pontos. Charutarias: em todos os bares centrais encontramos o "canto" das canetas, cigarros, chaveiros, gravação de ouro, etc. Máquinas automáticas de sorvetes, hoje em menor número, reunem também uma determinada freguesia. Tais fatos podem ser observados, por exemplo, na Rua Formosa. Também objetos de uso público recebem denominações populares, como, por exemplo, o famoso "orelhão" dos telefones. 13. Denominação popular de ruas e bairros. A referenciação popular utiliza muitas vezes nomes de antigos proprietários de terrenos como substituto do nome oficial do bairro. É o caso dos "terrenos do Klabin" na região da atual Vila Mariana e o "Mato do Galhota" na Casa Verde. Também antigas funções de uma determinada região continuam a ser usadas na denominação popular: o "Matadouro" da Vila Clementino, a "Granja" da Vila Santa Maria. Às vezes, são os aspectos geográficos e topográficos que motivam um apelido, como no caso do Morro do S (Casa Verde). Quanto aos riachos e córregos, lembramos dos da Traição, do Cabuçu, Itororó e do Sapateiro. A tendência de se conservar os antigos nomes também pode ser verificada nas estradas, hoje avenidas: a "Estrada do Mandí" (Av. Deputado Emílio Carlos); a "Estrada da Boiada" (Av. Diógenes Ribeiro de Lima); a "Estrada do Mandaqui", a do "Cabuçu", a do "Chora-Menino". Em quase todas as estradas há determinadas curvas perigosas que são consideradas como "curvas da morte". Também árvores e rochedos servem como pontos de referência. Podemos citar o antigo "bambuzal" da Vila Santa Maria, a paneira do Morumbí e a pedreira do Jaguaré. (...) Folk-espaço em função da idade Folk-espaço infantil. Para a criança, o espaço adquire uma grande riqueza de significados. A partir de outros critérios e situada em diferente plano de percepção, a criança valoriza e vive, intensamente, cada pequeno espaço, cada variação de textura, cada material. Estudaremos este assunto, sob o ponto de vista que interessa neste contexto, em três ítens: a) textura. A criatividade infantil manifesta-se aqui principalmente naquilo que poderia ser chamado de "folclore da calçada". Entre as suas inúmeras expressões, apontamos: - calçada de cimento liso, reticulada. Éla é deal para se jogar "amarelinha", pois desenho já está pronto e, no caso de uma queda, não há perigo de se machucar. Também é ideal para pular "quadrados", isto é, unidades. No caso, a melhor é a "lisa-furadinha", onde não se escorrega. - calçada de cimento liso, sem divisões. Ela é ótima para se desenhar com giz ou carvão. Geralmente são rachadas ou remendadas, o que sugere à criança mil e uma formas e desenhos imaginários. - calçada de cimento áspero. Ela é boa para "pular pau", porque o pau não escorrega. O único problema é que se tem que usar paus "de verdade" e não apenas traços de giz, pois neste tipo de calçada não se apagam facilmente. - calçadas com grandes buracos, deixando aparecer a terra. São ideais para brincar de lagos, represas e serras. - calçadas cheias de pedregulhos. Se os pedregulhos forem pequenos, dá para desenhar, senão os buracos funcionam somente como depósito de pedrinhas. - ruas asfaltadas, em descidas e curvas. São ideais para se andar de carrinho de rolemã, patinete ou bicicleta. - ruas calçadas com "macacos". São ideais para se deixar bicicleta trepidar. - calçadas de cerâmica. São ideais para escorregar. - calçadas de terra. São ótimas para jogar bolinhas de gude ou brincar com os veios formados pela água. É ainda interessante observar: - o pião, no cimento, vira "perereca", saltando muito, na terra, faz buraquinho. - brincar de andar apalpando muro de olhos fechados ou com um pequeno pedaço de madeira ou carrinho. b) desenho: - as trilhas. Elas exercem uma atração irresistível nas crianças, que sempre preferem andar nas "ruinhas" dos "campinhos" do que pelas ruas. - postes. Os mais "gordos", brancos, de cimento, são bons para "piques"; os de ferro, para fazer barulho, batendo-se com um pedaço de pau enquanto se corre; os de madeira, para fazer riscos ou observar os buraquinhos. - saídas de carro e desníveis de calçada. Elas são aproveitadas pelas crianças para descer correndo com carrinho de rolemã ou bicicleta. Lembramos ainda dos atos de - brincar de andar na guia da calçada sem cair. - brincar de andar com um pé em cima da guia e outro na rua. - equilibrar-se em cima de trilhos e paus. - andar pisando somente nos rachados, em determinados desenhos ou sem pisar nas rachaduras ou divisões das calçadas. - escorregar em corrimão. - desenhar em vido embaçado. - gravar "caminhos" na madeira de mesas e carteiras. - observar o desenho das gotas escorrendo pela janela, dirigindo-as. - brincar de dirigir "arquinho" . - brincar de roda guiada com um pedaço de pau e arame. c) espaço. A criança conhece e sente os espaços de sua casa e de sua vizinhança de modo totalmente diverso do adulto. Naturalmente, condicionada pelo seu tamanho, dirige a sua atenção ao micro-espaço: - cantos. Os cantos formados por paredes, móveis ou mesmo, propositadamente, com papéis, oferecem muitas possibilidades de brinquedo. - buracos, canos, vãos de escada bem como "embaixo ou atrás de móveis" constituem lugares preferidos para a arrumação de "casinha" ou "esconde-esconde". - caixas, para entrar-se dentro, para arrastar na calçada ou para por na cabeça. - ruas sem saída e "vilas". (...)
Trechos de conferência proferida na Escola e Museu de Folclore da Associação Brasileira de Folclore, São Paulo, sob o título "Folkurbanismo? Tentativa para a compreensão das múltiplas possibilidades de sensação da metrópole" (1973). Baseado em pesquisas que levou ao Trabalho de Graduação Inter-Disciplinar apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (1972). Os mapas e diagramas foram excluidos desta publicação. Publicado em partes em Brasil-Europa & Musicologia, ed. H. Hülskath. Köln: I.S.M.P.S. e.V. 1999,75-88. ©Todos os direitos reservados
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