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MUSICOLOGIA COMPARADA E A ESTRUTURAÇÃO MUSICAL: POSITIVISMO PSICOLÓGICO E A QUESTÃO DA GÊNESE DOS SISTEMAS TONAIS (1972)
Antonio Alexandre Bispo
A disciplina "Estruturação Musical", como a compreendemos e aqui a lecionamos, representa uma espécie de Teoria Histórica da Música, ou melhor, de uma teoria musical superior tratada históricamente e devidamente contextualizada. Assim, estudamos o desenvolvimento histórico das formas, a passagem da modalidade para a tonalidade no decorrer da Idade Média, o desenvolvimento histórico da polifonia e da linguagem harmonica, até chegarmos às técnicas e formas mais recentes, por exemplo àquelas próprias do serialismo e que também vamos tratar historicamente. Procuramos, com isso, abandonar um tratamento sistemático da teoria, da harmonia, do contraponto e da morfologia, pois isto tem levado a um pensamento por demais esquemático e conservador, acostumado a encarar a linguagem musical por assim dizer segundo receitas. Por essa razão, partimos da análise histórica de exemplos musicais contidos em antologias e também de livros como o recentemente publicado de Bruno Kiefer e que trata da evolução das formas musicais. Quando, porém, tentamos tratar mais a fundo questões de natureza básica, como por exemplo o problema da afinação, os intervalos, os sistemas tonais, pentatônicos, heptatônicos, etc., as escalas e os modos, tudo fica mais difícil. Utilizamos exemplos tirados de música não-européia e somos tentados a estudá-los como se representassem fontes de fases mais antigas, talvez até originais ou "primitivas" da evolução musical do homem. Como todos sabem, a apostila que usamos, de Jacques Chailley, e que trata da evolução da linguagem musical, parte de um procedimento semelhante. Entramos aqui, porém, num campo de estudos que pertence tradicionalmente à Etnomusicologia, ou melhor da Musicologia Comparada e que foi de grande importância na história dessa disciplina. Um dos seus principais representantes foi Erich Moritz von Hornbostel, nascido em Viena, em 1877 e falecido em Cambridge, em 1935. Ele é considerado, juntamente com o seu professor Carl Stumpf (1848-1936), como sendo uma das personalidades que mais marcaram o desenvolvimento da Musicologia Comparada. A linha de pensamento desse pesquisador pode ser melhor compreendida se considerarmos que ele recebeu tanto formação científico-natural quanto filosófica na Áustria. Após o seu doutoramento, em 1900, dedicou-se a estudos musicológicos, psicológicos e sono-psicológicos em Berlim, onde tornou-se assistente de C. Stumpf e diretor do importante Arquivo Fonográfico. Após a tomada de poder pelos nazistas, em 1933, E.M. von Hornbotel viu-se obrigado a abandonar a Alemanha. Nos Estados Unidos, tornou-se professor da "Nova Escola de Investigação Social" de Nova Iorque. Quanto aos seus escritos, podemos guiar-nos pelas listas bibliográficas publicadas na Ethnomusicology Newsletter (N° 2, 1954) e na Etno-Musicologia de J. Kunst (Haia 1955). Já de 1902/03 temos um estudo,- realizado juntamente com Otto Abraham-, a respeito do "sistema sonoro e música dos japoneses" (SIMG, Obras Coletâneas da Sociedade Internacional de Música IV, reed. 1922). Este foi o primeiro de uma longa série de artigos sobre a música de várias culturas, enfatizando o aspecto do estudo da melodia. Os autores estudam aqui escalas, fazem diferenças entre melodias vocais e instrumentais e tratam da afinação, tanto teórica quanto usual. Dedicam-se menos ao estudo do rítmo, da forma e de outros aspectos musicais. Em 1903/4, E. M. v. Hornbostel publicou, também com O. Abraham, o estudo "Melodias fonografadas na Índia" (SIMG V) e, em 1904, "Melodias turcas fonografadas", na revista alemã de Etnologia N° 36, reeditada em 1922. O artigo de título "Melodias indígenas a Columbia Britânica fonografadas" foi publicado em 1906 (Volume de aniversário de F.Boas, reeditado em 1922). Seguiram-se outros relatos sobre melodias fonografadas: da Tunísia (SIMG VIII 1906/7, reeditado em 1922); de Madagascar e da Indonésia ("Viagem de pesquisa S.M..S.", Planet 1906/7, V, Berlim 1909) e, muito mais tarde, da Islândia (Pesquisa Alemã da Islândia, 1930, Breslau 1933). Quanto a estudos mais genéricos, E.M. von Hornbostel escreveu, também com O. Abraham, em 1905/6, um artigo sobre a possibilidade de harmonização de melodias exóticas, tema de grande interesse para compositores da época (SIMG VII). Em 1905/6 tratou dos problemas da Musicologia Comparada (ZIMG = Revista da Sociedade Internacional de Música VII) e, em 1906, da situação atual da Musicologia Comparada, estudo publicado nos Anais do Congresso de Basel, onde publicou também o estudo sobre o sistema tonal e a música dos melanésios. Em 1909, durante um congresso realizado em Viena, apresentou estudo sobre a polifonia na música não-européia e deu "Conselhos para a transcrição de melodias exóticas" (com O. Abraham, SIMG XI, 1909/10). Em 1910, no Quarto Congresso de Psicologia Experimental, realizado em Innsbruck, na Áustria, E.M. von Hornbostel apresentou, juntamente com C. Stumpf, um estudo sobre o significado das investigações etnológicas para a Psicologia e a Estética da Música, ao qual se seguiu, na mesma linha, o estudo sobre critérios acústicos para a demonstração de liames culturais, publicado na revista alemã de Etnologia XLIII, em 1911. Em "Melodia e Escala", de 1912, podemos encontrar detalhes sobre a teoria da escala e métodos de análise melódica. Aliás, o relacionamento entre a escala de uma peça e a sua linha melódica é uma das principais preocupações desse autor. De fundamental importância é a obra "Sistemática dos Instrumentos Musicais", publicada, juntamente com Curt Sachs (1881-1959), em 1914, na revista alemã de Etnologia (Zeitschrift für Ethnologie XLVI). E.M. von Hornbostel publicou estudos referentes a numerosas culturas e regiões, tanto sobre a música do Novo-Mecklenburg do Sul (em obra de E. Stephan e F. Graebner, Berlim 1907, reeditado em 1922), como sobre os Kubu da Sumatra (em publicação de B. Hagen, Frankfurt 1908, reeditado em 1922). Ele escreveu sobre a música dos EUA (ZIMG XII, 1910/11), sobre a música de povos turcos (em livro de R. Kartuz, Lípsia 1911), sobre a música das ilhas Salomão (em publicação de R. Thurnwald, Berlim 1912), sobre notação chinesa (em AfMW = Arquivo de Musicologia I, 1918/19), sobre a orquestra siamesa (Arquivo de Musicologia II, 1919/20), sobre a música dos Semai em Malaca (Anthropos XXI, 1926), sobre o Jazz (Melos VI, 1927), sobre a música afro-negra (International Intitute of African Languages and Cultures, Memorandum IV, Londres 1928) e sobre instrumentos africanos (Africa VI, 1933). Juntamente com R. Lachmann, E.M. von Honrbostel escreveu sobre a música no Norte da África, mostrando os paralelos asiáticos com a música bérbere; também estudou a origem do sistema tonal no Bharata. De particular significado para o estudo da matéria na América do Sul são as suas publicações a respeito das canções da Terra do Fogo (American Anthropologist, New Series XXXVIII, 1936; Ethnos, 1948), assunto facilmente encontrado em versão espanhola na Revista Musical Chilena (VII, 1951). No seu estudo "Chao-tien-tze: Uma notação chinesa e as suas execuções", saído no Arquivo de Musicologia alemão, em 1918/19, que temos aqui à disposição, E.M. v. Hornbostel parte do princípio que só culturas tardias conseguiram fixar as formas da música através da grafia. Ainda hoje só os povos do Velho Mundo conheceriam a arte da comunicação escrita; os povos da África, da Ásia do Sul, das ilhas do Pacífico e da América se baseariam, quanto à memorização de melodias, na contagem e em cálculos através de nós e marcas, assim como através de desenhos usados no culto e na magia. Só quando a escrita da palavra separou o texto do melos, só quando o instrumento discerniu os tons entre si e a teoria os denominou é que se tornou possível fazer o som legível para os olhos. A origem teria determinado, assim, a forma da grafia primitiva. Elas não teriam conhecido, para ele, sinais especiais, mas teria começado com ideogramas, letras ou cifras. Dos tubos da flauta Pan, que com as suas medidas determinaram alturas absolutas, os chineses teriam tomado os nomes e os sinais para os seus litofones e carrilhões. Às cordas mais altas e mais baixas, os gregos teriam dado os nomes das letras iniciais para denominar os tons extremos da escala instrumental e que é a mais antiga do que a notação de canto alfabética. Antes que os hindus escrevessem nomes de tons com sinais abreviados em sânscrito, teriam cifrado os textos dos cantos védicos. Ninguém teria enumerado os tons do canto, antes que as escalas tivessem sido fornecidas pelos instrumentos. Assim, as cordas da cítera japonesa seriam denominadas por cifras e os árabes da Idade Média conheciam tabulaturas. 4 dos 9 sinais que no ano mil D.C. os povos da estepe mongólica teriam trazido com seus violinos para a China representavam cifras. Só através da origem do instrumento pode-se conceber assim, segundo H.M. von Hornbostel, que nomes e sinais dizem respeito à coincidência dos tons da oitava. Em Bali, todos os 11 tons de uma escala pentatônica que cobre o âmbito de duas oitavas são anotados diferentemente. Os chineses mantiveram os idiogramas liu e wu para as oitavas, embora um determinativo os diferenciam em sons escuros e claros. Os nomes, as letras e cifras para cordas e furos de flautas podem apenas se transformar em sinais de graus de escala quando se modifica a distância com relação aos vizinhos por meio da afinação. Assim, não se tem, de forma exata, nem a altura absoluta, nem a relativa. A determinação da tonalidade exige conhecimento da teoria, o que falta aos práticos. Também a notação popular não seria, para E.M. v. Hornbostel, mais do que uma ajuda da memória. As sílabas que o aluno de música japonês aprende de memória e que os cantores cegos de Pequin memorizam corresponderiam àquilo que se observa nos livros de canto evangélicos e nos panfletos com cantos populares. Desta situação decorreriam problemas e tarefas para o pesquisador. Transcrições pouco nos dizem a respeito de como a música soava, de fato. Elas informam sobretudo quanto ao rítmo, à fraseologia, à colocação de oitava, à escala e aos intervalos. Um conhecimento mais preciso da música chinesa, por exemplo, com a ajuda de fonogramas, ou seja, de registros sonoros, permite que percebamos a discrepância existente entre a notação e a execução. Através da comparação entre o anotado e o fonografado dever-se-ia tentar tirar do esqueleto a forma viva e nesta encontrar a alma. O manuscrito dá a estrutura, mas não o Nomos puro, separado do individual e acidental. O pesquisador só o pode conseguir através da comparação da escrita com a realidade sonora. A esperança de se ganhar monumentos antiquíssimos através do uso de séculos posteriores parece estar, entretanto, fadada ao insucesso. (...) Com o seu interesse científico-natural, psicológico e fenomenológico comparativo de instrumentos musicais, E.v. Hornbostel tornou-se um dos fundadores da musicologia sistemática. Nesta, a análise do fenômeno musical ganha maior importância do que a sua consideração histórica. Entre os estudos de caráter genérico e teórico-científico de von Hornbostel devem ser salientados o estudo elaborado com O. Abraham sobre a psicologia dos intervalos (Revista de Psicologia e Fisologia dos Órgãos dos Sentidos, I, Revista de Psicologia XCVIII, 1925), o trabalho sobre a Psicologia dos Fenômenos Auditivos (no Manual de Física VIII, ed. por H. Geiger e K. Scheel, Berlim 1927); o estudo sobre o som e o sentido ("Laut und Sinn", no livro em homenagem a C.Meinhof, Hamburgo 1927); um em que trata a norma de medida como meio de investigação histórico-cultural (na publicação em homenagem a P.W. Schmidt, Viena 1928); o trabalho sobre a tonalidade e o "ethos" (no livro em homenagem a J. Wolf, Berlim, 1929); as considerações a respeito da psicologia da forma de interesse para a crítica estilística (em Estudos para a História da Música, publicacão em homenagem a G. Adler, Viena/Lípsia, 1930); o estudo a respeito da deslocação de alturas (Revista de Laringologia XXI, 1931); o trabalho sobre a audição espacial (no Manual da Fisiologia Normal e Patológica XVIII, 1932). A respeito do seu próprio centro de trabalho em Berlim, E.M. von Hornbostel escreveu dois artigos de importância para a história da disciplina (Revista de Musicologia Comparada I, 1933). O Brasil entrou no âmbito de interesse da Musicologia Comparada sobretudo através do estudo de E.M. von Hornbostel de título "Sobre algumas flautas Pan do Noroeste do Brasil", de 1910 (em Th.Koch-Grünberg, Dois Anos entre os Indios II, Berlim, 1919). Esse estudo precedeu o desenvolvimento da teoria das "quintas sopradas" (Blasquintentheorie), uma das questões mais discutidas da Musicologia Comparada. Um primeiro relato a respeito dessa teoria foi publicado na revista Anthropos XIV/XV, de 1919, e XVI, de 1920. E.M. v. Hornbostel tentou provar a origem dos mais diversos sistemas tonais não-europeus e o seu relacionamento mútuo de forma genética. Ele explanou o seu procedimento no artigo "Sistemas Musicais". Segundo ele, as flautas Pan são afinadas de tal modo que o som fundamental de um tubo equivale à quinta soprada como som parcial do outro. A escala assim resultante não diferiria da escala criada pela divisão da corda, se a quinta soprada correspondesse à quinta pura de 702 c. O fundamento dessa teoria reside no seguinte fenômeno: ao assoprar-se fortemente um tubo fechado, soa como primeiro som parcial a duodécima, pois falham os sons parciais pares. Segundo Hornbostel, a quinta soprada não corresponde à quinta pura de 702 c; ela seria menor por motivos acústicos, diferindo dela segundo uma coma pitagoréica de 24 c, ou seja, teria só 678 c. De uma série dessas quintas resulta um ciclo que não se fecha depois de 12, mas só depois de 23 (com uma coma de só 6 c.). A escala assim formada compreenderia uma série de quartos de tom de 48 c e 54 c. O problema da teoria residiria em encontrar métodos para separar as escalas empregáveis daquelas não aptas a serem usadas. E.M. v. Hornbostel sugeriu várias hipóteses, partindo de uma série de deslocações, à qual todas as outras se reduziriam. Nessa série apareceriam todos os tons do ciclo em dois instrumentos que se complementariam, masculino e femininamente. Ter-se-ia assim um par de flautas Pan cujas alturas absolutas difeririam de uma quinta soprada. A série constituir-se-ia de 3/4 de tom equidistantes de 156 c.. Essa série de graus iguais não corresponde, entretanto, às escalas usadas de fato. Por isso, E.M. v. Hornbostel lançou uma segunda hipótese: uma série de possibilidades de seleção da escala por cálculos. Essas escalas deram os valores correspondentes àqueles que ele e Kunst encontraram na América do Sul e na Melanésia, em xilofones na África e em instrumentos de Java e Bali. A determinação intervalar das séries foi feita para entrosar com as escalas. Para isso, ele usou o critério da altura absoluta. No seu estudo "A norma de medida como meio de investigação histórico-cultural", E.M. v. Hornbostel considerou a probabilidade de que uma medida antiga, sagrada, tenha sido empregada em instrumentos musicais, determinando, assim, alturas absolutas. Um tubo de comprimento do antigo pé chinês (23 cm) daria, segundo ele, o tom fundamental chinês Huang chong (Sino amarelo), de 366 Hz (mais baixo do que o fá#). Partindo-se desse tom e fazendo-se o ciclo das quintas, tem-se 32 tons absolutos que correspondem mais ou menos às escalas usadas. Ele via a prova desse fato na coincidência das alturas absolutas. Quando são inexatas, então se trataria de degeneração ou desafinação. Assim, a teoria surgiu como chave para explicar a origem de sistemas tonais exóticos sobre bases científico-naturais, assim como para elucidar o contexto genético de diferentes sistemas entre si e com o ciclo de quintas. O principal crítico desta teoria foi M.F.Bukofzer, que demonstrou que ela se baseava em pressupostos acústico- e metodicamente errôneos. Na Revista de Física alemã, volume 99, de 1936, Bukofzer publicou medições precisas feitas em instrumentos musicais primitivos. Na revista Anthropos (XXXII, 1937), Bukofzer colocou explicitamente a questão: "Pode a teoria das quintas sopradas contribuir para esclarecer os sistemas sonoros exóticos?". No Congresso Internacional de Musicologia, em Nova Iorque, em 1944, considerou, sob esse aspecto, a evolução dos sistemas tonais javaneses. No seu primeiro estudo, Bukozer tinha pretendido aplicar o método das quintas sopradas aos tubos de flatuas Pan dos Mares do Sul. No decorrer da pesquisa, entretanto, constatou os erros com o uso de um método de medida tonométrico mais exato do que o de E.M. v. Hornbostel. Em primeiro lugar, a quinta soprada não é constante acusticamente; as variações dos sons parciais da duodécima são deformações ocasionadas por fatores circunstanciais no ato do sopro. Ela varia bastante, dependendo da dimensão do tubo, sobretudo para os longos. Uma série de quintas sopradas de diferentes tubos e que são transpostas em uma ou duas oitavas não pode formar ciclos de graus iguais. Os tons fundamentais das flautas Pan só podem ser medidos com uma exatidão de cerca de 20 c.. Nos tons parciais, essa variação chega até 30 ou 40 c.. A cifra de 24 c. suposta por E.M. v. Hornbostel estaria, portanto, abaixo da média. Ele teria chegado, assim à quinta soprada através de cálculos, não através de medições; ele teria tentado fundamentar uma constante baixa de altura através de uma lei acústica pressuposta. O segundo êrro consistiria na altura absoluta do tom. O Huang chong não teria 366 Hz, mas só ca. de 358 Hz. Isso foi também confirmado por Schlesinger, independentemente de Bukofzer. O êrro de E.M. v. Hornbostel foi ter igualado a altura calculada teoricamente com o tom que se obtém com o sôpro. Os dados de Kunst, que o Huang chong assoprado em tubo de 8,1 mm seria de 366 Hz baseia-se num êrro de medida, pois um tubo dessa ordem daria, na melhor das hipóteses, 360 Hz. De fato, num tubo de 23 cm e diâmetro de 8 mm o tom é de ca. de 358 Hz. Há, portanto, uma confusão entre o cálculo teórico e o constatado empiricamente. Porque haveria, então, tantas coincidências? Elas dependeriam dos erros no método de construção dos ciclos.Após 23 passos dentro de uma oitava e com uma tolerância de desafinação de 25 c. não haveria nenhum som que não coincidisse com um dos do ciclo. No caso de irregularidades, a teoria ajudava-se com o "intercâmbio de sons homólogos" das séries masculinas e femininas. Essa troca é porém um procedimento acusticamente inaceitável, pois através dela todos os sons se encontram à disposição, o que só vale no papel, não na realidade. A coincidência da altura não é cientificamente aceitável, pois ela se baseia numa ilusão ótica. O desvio de 25 c. pode acontecer dos dois lados, de modo que o êrro em dois tons sucessivos pode chegar até a diferença intervalar de 50 c., eliminando-se o característico 3/4 de tom. A soma dos desvios prova por que escalas, cuja altura absoluta comprovaria uma dependência do ciclo, coincidem mais ou menos com o ciclo, mas não com os seus intervalos. Relevantes musicalmente são porém só os intervalos medidos, não as alturas. Em terceiro lugar, a teoria trabalha sobretudo com quintas, enquanto o sistema Pelog, por exemplo, se baseia em melodias de quartas e numa estrutura tetracordal. A teoria se fundamenta, portanto, no pressuposto da demonstração, não na demonstração do pressuposto. A teoria é um círculo vicioso, altamente especulativo. Ela supõe uma antiga cultura com uma maravilhosa obra de afinação que não é até mesmo alcançada hoje, com os mais precisos métodos; ela é, portanto, um produto do cálculo. Seria necessário provar que um tubo de 23 cm teria tido realmente o sentido de uma norma, como v.Hornbostel o quis. Para isso, seria necessário coletar um copioso material descritivo apto a demonstrá-lo. E.M. v. Hornbostel partiu, portanto, da hipótese de que os tubos da flauta Pan são afinados pelos tons parciais. Depois da sua morte, Schneider confirmou essa hipótese através de documentações da música indígena da América do Sul, sem, porém, apresentar materiais tonométricos. A coleta de materiais de v. Hornbostel foi portanto errônea, como o prova a sua análise da flauta Pan brasileira. Ele esclarece a afinação através de quartas sopradas (quintas descendentes) e examina essa suposição com valores de cents teóricos, sob o pressuposto de que a quinta seria constantemente menor. Ele não compara a sua hipótese com os intervalos medidos. Fazendo a prova, tirou duas séries de quintas sopradas, encontrando grande desvio (mais de 100 c), o que derruba a suposição de um constante abaixamento, e que sugere que a afinação se sucedeu pelo som parcial. Existe outro método métrico de afinação de tubos Pan, mostrado por Thurnwald. Aqui produziram-se quintas tomando-se 2/3 do tubo fundamental como medida para o próximo tubo. Para esse intervalo, Bukofzer usa a expressão de quintas de medida: o princípio das cordas é transposto para os tubos. As duas formas de afinação podem ser constatadas, é fato, mas seria prematuro tirar-se conclusões no sentido de um sistema de produção sonora. A teoria transporta para a música exótica a idéia de um desvio constante e, portanto, a noção de um sistema fixado precisamente. O material tonométrico de flautas Pan é, além do mais, obtido de escalas instrumentais abstratas. Seria necessário compará-los com aquelas da música vocal. Resumindo, pode-se ter uma visão suscinta dessa discussão lendo-se a resenha que J. Handschin fêz de um trabalho de J. Kunst denominado "Around v. Hornbostel's theory of the cycle of blown fifths", de 1948, publicado juntamente com a resenha da "Música em Java" (Haia, 1949). Essa resenha foi publicada na Acta Musicologica XXII (156-171), em 1950. O sujeito primordial da discussão seriam as escalas javanesas. Os nomes Pelog e Slendro não designariam nenhuma escala por sí (heptatonica com semitons ou pentatonica sem semitons, segundo a idéia corrente), mas sim um sistema de escalas comportando variedades que podem diferir consideravelmente entre si. Qual seria a distinção entre o Pelog e o Slendro? O autor não procuraria definir; ele classificaria os dois sistemas com as suas variedades segundo uma ordem genética. Essa ordem genética parte porém de uma hipótese, ou seja, a teoria das quintas obtidas pelos sons harmonicos de um tubo, formulada por E. von Hornbostel. Handschin discorda com esse princípio. O método deveria ter sido antes apresentar o material bruto, as escalas com as suas medidas, classificando-as por tipos segundo as tentativas de classicação indígena para, por fim, propor-se, se fosse o caso, uma teoria generativa. Seria bem possível que Kunst e E. von Hornbostel tivessem seguido esse caminho; da maneira como apresentam os resultados, porém, a descrição se mistura com a teoria. Assim, Kunst dá primeiramente dois quadros ilustrando as afinidades de certas escalas Pelog e Slendro com o ciclo das quintas sopradas e só depois apresenta as escalas concretas com as suas medidas. Os autores não oferecem ao leitor todas as fases do seu raciocínio. A primeira nota (0= 366 vibrações) foi postulada segundo o que Hornbostel determinou que um tubo fechado de 230 mm produzia, sendo esta medida derivada do antigo pé chinês. Handschin acentua o caráter difuso da teoria, em razão da diversidade dos procedimentos empregados. Constata certa inconsequência, uma vez que em alguns casos a série tirada do ciclo já representara a série de intervalos da escala dada ou procurada, sendo que, em outros casos, ela teve de ser adaptada segundo a ordem das alturas. Ele sublinha a harmonia dessa construção intelectual. Handschin aborda a questão da relação das escalas com os ciclos. A teoria do ciclo das quintas sopradas foi defendida por Kunst em publicação à parte. O autor se defendeu das críticas de M. Bukofzer, completado do ponto de vista físico por M.V.Hardung. Handschin acha, porém, que ele não consegue corroborar a tese principal. Ele se refere àquilo que disse na sua obra "O caráter do tom" (Der Toncharakter): o cálculo das probabilidades poderia, talvez, dar segurança às teorias. A primeira questão seria a de ver claramente os elementos que entram no jogo. Procedendo-se metodicamente, poder-se-ia evitar mal-entendidos resultantes de argumentos díspares, uns tirados da configuração da escala, outros da coincidência de alturas absolutas, equívoco criticado por M. Bukofzer. Para ele, mais do que a acústica, seria importante considerar a interpretação musical das escalas. A relação com o homem deveria estar, porém, em primeiro plano. O problema científico essencial seria o de saber quais os valores sonoros que uma escala teria para um nativo. Ou seja, a que estado psiquico corresponderia a quinta levemente diminuída e a quarta aumentada, que desempenham, por exemplo, um papel importante na música javanesa. Não se pode confundir a significação musical de uma escala com a sua constituição acústica, o que precisa ser investigado, mesmo nos casos em que conhecemos o encadeamento histórico das escalas. Handschin aprova a crítica de M. Bukofzer da teoria das quintas sopradas, não tanto, porém, nas explicações positivistas que este quis dar. Deve-se distinguir entra a quinta em si e as suas formas reais. Aqui tira êle conclusões diferentes de um certo positivismo moderno que parece supor que a quinta, tal como nós a conhecemos, teria nascido do prazer dos homens em dividir a corda segundo relação numérica de 2/3. Handschin lembra do gosto por aritmética, pela arte combinatória de permutações de Hornbostel, que este cultivava até mesmo em horas de lazer em família. Um seu colega teria até mesmo firmado que, na sua opinião, a "Blasquinten-Theorie" e o sistema dodecafônico de Schoenberg teriam provindo de uma certa atmosfera de casa de café vienense da passagem do século. (...) Tornou-se moda, hoje, criticar a Musicologia Comparada e sobretudo o trabalho de E.M. v. Hornbostel. Muitas dessas críticas, porém, parecem que são feitas por pesquisadores que, nem sempre possuindo qualificações necessárias, apenas querem parecer particularmente humanistas apontando para a necessidade de que o Homem seja mantido no centro de todas as teorias. Ora, essa foi a opinião de J. Handschin, já há muitos e muitos anos...Precisamos dar continuidade à discussão e ao desenvolvimento do pensamento e não continuarmos a bater em lugares-comuns. Para isso, nós, aqui no Brasil, temos grandes oportunidades, uma vez que a flauta Pan é muito difundida na Amazônia, sobretudo na região do Rio Negro. Precisaríamos procurar os construtores de flautas e, com base em pesquisas de campo, tentar conhecer o procedimento que seguem na sua construção e no seu uso.
Aula do curso de Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo, 1972. Publicada em partes em BrasilEuropa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: I.S.M.P.S. e.V. 1999, 131-138. ©Todos os direitos reservados
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