Academia Brasil-Europa© de Ciência da Cultura e da Ciência Akademie Brasil-Europa© für Kultur- und Wissenschaftswissenschaft
»_português---------»_deutsch---------»_impressum---------»_contato---------»_Brasil-Europa.eu
BASES PARA O ESTUDO DA PERCEPÇÃO NO BRASIL (1972)
Antonio Alexandre Bispo
O termo "estética" vem do grego e significa "percepção". O filósofo alemão Alexandre G. Baumgarten (1714-1762) usou-o para denominar uma de suas obras (Aesthetica, 1750-58), escrita após ter estudado e publicado um livro de metafísica (1739). Ele se situa portanto numa tradição do pensamento na qual a percepção do belo no mundo das aparências está vinculada com a idéia e a procura da contemplação da perfeição em toda a sua plenitude, ou seja, absoluta, universal. O nosso grande modêlo é porém aqui sobretudo um outro erudito alemão, João Joaquim Winckelmann (1717-1768), autor de um "Tratado acerca da capacidade do sentir o belo na arte e do seu ensino. A palavra "percepção" é usada hoje frequentemente para designar cursos de formação auditiva e rítmica, substituindo o antigo solfejo. Esse emprêgo do termo é superficial e dá margens a mal-entendidos. É, na verdade, inadmissível. Somente pode ser desculpado por motivos práticos, determinados pelas circunstâncias. Alunos sem absoluta formação musical necessitam, de fato, de um treinamento elementar. Não havendo uma disciplina correspondente no currículo, sacrifica-se a Estética. Parto do seguinte pressuposto: a percepção, a que a Estética no sentido original da palavra se refere, não pode ser resumida de modo superficial à percepção dos cinco sentidos. Os olhos vêem o visível, não o invisível; os ouvidos escutam o audível, não o inaudível, o tacto sente o palpável, não o imaterial, o olfato sente o odor, não o inodor, o paladar "sabe" aquilo que tem gosto. No sentido figurado, tudo o que é "visto", ou seja, "compreendido", o que é considerado como "claro" ou "escuro", mesmo que não seja visível com os olhos, poderia ser relacionado com a visão. Tudo aquilo que é entendido, percebido como agudo ou grave ou portador de sentido racional, poderia ser relacionado com os ouvidos. Tudo aquilo que é "apanhado" e formado, sentido como quente ou frio, mesmo que não seja palpável, ao tacto. Tudo aquilo que é julgado como amargo ou doce, tragável ou não, agradável ou não, ao paladar e ao odor. É através dos ouvidos que percebemos o que se diz, entendemos a língua, a lógica das frases e dos argumentos, as demonstrações e portanto tudo aquilo que tem a ver com a razão e o raciocínio. Quando, portanto, lemos um texto ou captamos por exemplo racionalmente a estrutura de um edifício, usamos de aptidões que dizem respeito ao ouvido, ou seja, ao nosso ouvido interior. Quando formamos interiormente uma imagem, um retrato de algo, quando reconhecemos uma situação ou um fato interiormente, mesmo que não os vejamos corporalmente, então usamos dos nossos olhos interiores. Assim, um homem que é cego não deixa de ter uma óptica interior e aquele que é surdo uma audição interna. Da mesma forma, sentimos no sentido figurado se uma atmosfera é "quente" ou "fria", "rude" ou "lisa" sem a sentir com o tacto. Também sentimos o amargo ou doce de fatos e situações, os percebemos como agradáveis ou não, apetecíveis ou não, e expressamos também o nosso "gosto", sem que para isso precisemos usar do nosso nariz ou da boca. O Homem auditivo, portanto, não é o homem musical, mas sim o homem lógico, racional; o Homem visual, portanto, não é o pintor, mas sim o homem que "vê" interiormente, que conhece, que compreende. O Homem de tacto não é o escultor, mas sim aquele que sabe usar de tacto no sentido figurado da palavra. Da mesma forma, o Homem de olfato e paladar não é o perfumista ou aquele que come bem, mas sim o Homem de "gosto" no sentido metafórico do termo, aquele que percebe o que é agradável ou não, o que é tragável ou intragável, o que deve ser aceito ou rejeitado. Cumpre salientar a importância do órgão que se relaciona com a fala. Os outros órgãos são por assim dizer passivos, pois não podem se esquivar da recepção; a boca, ao contrário, pode rejeitar aquilo que não agrada ao paladar. Assim, o paladar sabe discernir, julgar e rejeitar. Além do mais, enquanto os demais órgãos apenas são ou quase que exclusivamente são receptores, o homem fala e canta através da boca. Tudo o que ele expressa ou comunica aos outros, portanto, pode ser metaforicamente atribuído a esse órgão, mesmo que aconteça por outros meios, por exemplo através dos olhos, da expressão facial, etc. Ao lado dessas considerações, precisamos lembrar que a situação existencial do homem é determinada por três parâmetros: tempo, espaço e matéria. Ele está sujeito à temporalidade, encontra-se num determinado lugar e vive no mundo material. Tempo O homem não quer envelhecer, não quer morrer e sofre com o fato de ser ele, os seus e as suas coisas perecíveis. A transitoriedade do tempo é, assim, considerada na maior parte dos casos como negativa. Quantas vezes se deseja que um bom momento nunca passasse, que o tempo permanecesse nessa situação feliz e que não fugisse: tempus fugit! Que o bom momento não fosse passageiro, mas sim eterno presente O tempo portanto, tem a ver com o bem e o mal, e um tempo que não fosse passageiro, o eterno presente ou o presente eterno, com o bom e o bem por excelência. Ele tem a ver também com o querer, pois todos os seres querem aquilo que lhes parece ser um bem, ao qual se dirigem como a um objetivo almejado. O homem porém, ao contrário dos outros seres, pode errar na escolha do seu objetivo. Muitas vezes almejamos algo que nos parece ser um bem e reconhecemos apenas a posteriori que foi um êrro e que nos fêz mal. É um problema e uma fraqueza do seu discernimento. O homem necessita portanto apurar a sua capacidade de discernimento, o que é, como vimos, atribuída metaforicamente ao "gosto", ao paladar e ao olfato. O bem em si, o objetivo último, e portanto a causa primeira, ao qual se dirige o seu querer, não pode ser por ele compreendido, transcende a sua capacidade humana. Espaço O homem não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, está limitado e envolvido pelo espaço onde se encontra e o que nele vê considera como verdadeiro. Ele pode também ter um espaço interior, que vê com os seus olhos internos e ele percebe que essa visão nem sempre corresponde à realidade, que não é verdadeiro. O espaço tem a ver, portanto, com a verdade ... e a mentira. O homem tem a capacidade, porém, através do uso da razão, de entender que o espaço ao seu redor não é tudo, que há outros espaços, para o qual pode ou não locomover-se. Ele sabe que, ao mesmo tempo que percebe o espaço ao seu redor, outras pessoas percebem outros espaços envolventes, em outras casas, em outros bairros, em outras cidades, em outros países, e que o planeta se encontra no espaço etc. O espaço tem a ver, portanto, com o entender. Se o tempo não-transitório ou o eterno é o objetivo último e a causa primeira, então o espaço só pode ter vindo desta origem, ou seja, o espaço em sí foi gerado pelo eterno, e, portanto, a verdade em si, sem qualquer sombra de mentira, foi gerada pelo bem que, em si, é inconcebível ao homem. A verdade é, por assim dizer, "filho" do bem, o bem o "pai" da verdade. Só através do espaço, ao qual se dirige o entendimento do homem, pode-se portanto chegar ao tempo não transitório, só através da verdade pode-se chegar ao bem. Se o que se quer é a perenidade ou a eterna presença do bem, que nesta vida só é vivenciada no passageiro de um momento feliz, então deve-se partir do entender, da admissão daquilo que é verídico, da fuga de todo o tipo de mentira: nada de fachadas, nada de falsas aparências, veracidade na vida, demonstrar o que se é, mesmo que isto exija coragem. A isso poderíamos chamar de um imperativo ético. Matéria O homem vive num mundo material e percebe, através dos seus órgãos dos sentidos corporais, fenômenos que ocorrem em meios materiais. Ele sente as qualidades daquilo que é material, se é quente ou frio, se é seco ou molhado, etc. A matéria tem a ver, portanto com o sentir. Através da sua sensação, o homem percebe que tudo o que é material é determinado por um par de qualidades contrastantes, opostas, das quais uma representa a falta da qualidade da outra. Assim, por exemplo, o frio é a falta do calor. O homem constata que a matéria é perecível. Por mais que procure dar-lhe forma, ela nunca responde plenamente àquilo que pretende e nunca permanece no estado ideal. Ele almeja um objetivo, que lhe parece um bem por exemplo, criar uma obra de arte , realizando uma imagem interior que concebeu no espaço envolvente, tem porém de constatar que a sua obra jamais corresponde totalmente ao ideal, pois a matéria que usa é perecível. Transportemos agora esse exemplo a um nível máximo de abstração: o bem em sí e o eterno que é o objetivo último do querer, assim como a verdade em sí e o espaço não podem ser materiais. A sua "substância" é imaterial, ou, poderíamos dizer , espiritual. Assim como na nossa existência distinguimos tempo, espaço e matéria que, ao mesmo tempo, formam uma unidade indivisível, assim também poderíamos dizer, num nível máximo de abstração, que há uma trindade que constitui, ao mesmo tempo, uma unidade. O que tem a ver essas considerações com a música e a arquitetura" Ora, a música é considerada como sendo uma arte relacionada com o tempo, pois ela decorre na temporalidade: ela flui, esvaece. A arquitetura é considerada como sendo uma arte relacionada com o espaço, porque ela organiza e cria o espaço no qual o homem vive. Nesse espaço, por exemplo, para visitar os diversos quartos de uma casa, é o homem que tem de se locomover e, portanto, empregar o seu tempo, enquanto que na música é ela própria que se movimenta. Por isso diz-se que a arquitetura é música materializada no espaço e música é arquitetura no tempo. Na arquitetura, a música é transformada em matéria sólida, por assim dizer em terra e em pedra, na música, a arquitetura se transforma em matéria que flui, líquida, por assim dizer, em água. Nas considerações anteriores chegamos porém à conclusão de que o tempo tem a ver com o bem e o querer, o espaço com a verdade e o entender. A música seria relacionada com o objetivo a que se almeja, que se quer, e que, como objetivo último e causa primeira, inconcebível, é o bem e o eterno. A arquitetura seria relacionada com a verdade que se entende e que, no seu plano ideal, é por assim dizer filho do eterno e o único caminho pelo qual se pode chegar a ele. Se o eterno é o pai do espaço em si, é ele o sumo arquiteto ou arquiteto do universo. Para criar a sua obra, porém, ele não poderia usar da matéria, como um arquiteto ou um escultor faz, pois a matéria também foi necessariamente originada pela causa primeira e, portanto, criada do nada. Ele criou analogicamente como um orador ou cantor, que exprime ao mesmo tempo as palavras e a "matéria" dessas palavras, ou seja a voz. Nenhum orador emite primeiramente a voz e a configura posteriormente com palavras! O arquiteto do universo, portanto, pode ser comparado com um homem que fala ou que canta com palavras. A matéria que criou não é informe e flui, ou seja, a sua obra poderia ser comparada com a música. O gerado pelo arquiteto por excelência seria, portanto, uma obra musical! Nesse caso, ele próprio seria, por ser a causa última, música em si, eterna, não temporária, o que é inconcebível para nós. Como a obra do arquiteto é arquitetura, e o arquiteto por excelência música em si, então a música seria o pai da arquitetura. Não esqueçamos, porém, que só através do espaço se chega à causa das causas, à qual devemos aspirar. Portanto, o homem musical não é aquele que sabe cantar ou tocar um instrumento no sentido superficial do termo, mas sim aquele que está pleno de vontade de alcançar o bem e que dirige a sua atenção à ordenação do espaço, à arquitetura e ao verdadeiro e real. O seu modêlo é o sumo arquiteto. Como este arquiteto cria ele então uma obra de natureza musical. Como vimos acima, muitas vezes o homem erra na sua vontade, por que quer chegar a objetivos que lhe parecem ser dignos de serem alcançados, mas que não o são. Ele precisa discernir, e esse discernimento é atribuido, em sentido figurado, ao paladar e ao olfato, ou seja ao gosto. Este seu gosto deve ser portanto apurado e este seria, do ponto de vista da Estética, um papel para o pedagogo. Se este despertar a atenção de seus alunos ao espaço envolvente, à sua ordenação e à veracidade na vida, na sociedade e na cultura, então criará homens musicalizados. Não se trata aqui do querer, ou seja, da vontade, nem do entender ou compreender, mas sim de sentir. Não nos ocupamos aqui com a Ética, a Lógica ou Teoria do Conhecimento, mas sim com a Estética. Discernir e julgar através do sentir, e aqui se deduz a importância prática da Estética. Trata-se do sentir quase que por um olfato humano, social e ambiental onde é que se encontram os pontos fétidos, discernir, quase que por um paladar humano, social e ambiental aquilo que é agradável ou não nas relações do homem entre si, os outros seres e o meio ambiente, aquilo que faz bem ou envenena. A Estética adquire assim um fim pragmático, ou seja, a melhoria de vida, o bem-estar social e a convivência responsável com as outras criaturas e com a natureza. A uma Estética musical neste sentido cabe sobretudo o sentir e o discernir quanto aos desenvolvimentos que ocorrem no tempo, todo o tipo de processos, quer sejam individuais, sociais e ambientais. A uma Estética arquitetônica, neste mesmo sentido, cabe sobretudo o sentir e o discernir quanto à ordenação espacial. Canta-se que o Brasil é um país belo por natureza. Quando consideramos porém as nossas cidades e o meio ambiente destruído pelo homem, assim como a qualidade de vida de nossa distorcida sociedade, então colocamos em dúvida a Estética dos homens que o povoam. Do ponto de vista dos desenvolvimentos temporais, pode ser que a Estética não tenha falhado tanto, pois temos o orgulho de ser um povo dócil, alegre, avesso a conflitos desagradáveis, voltado à música e à dança. Do ponto de vista da ordenação espacial, porém, os resultados são claramente catastrofais. A Estética, portanto, não é disciplina supérflua, mas tem uma razão de ser e uma importância que consideramos como fundamental para a nação. Creio que com estas reflexões tocamos em pontos importantes que vamos tratar em pormenores no decorrer do curso. Vamos tratar de aspectos ontológicos e fenomenológicos, especulativos e empíricos. O querer, o entender e o sentir, que encontramos em vários filósofos que se ocuparam com a Estética, podem ser relacionados com os três valores de Platão, o bem, o verdadeiro e o belo. Já este fato mostra a importância de considerarmos as idéias da Antiguidade, da Filosofia Natural, dos Pitagóricos, de Aristóteles, assim como do Neo-Platonismo, sobretudo de Plotino. Uma consideração especial merecerá a filosofia e a teologia da Idade Média, uma vez que a sistematização escolástica marcou profundamente as conceituações religiosas que deram os fundamentos de nossa cultura e que até hoje permanecem vivas. Por isso, os neo-tomistas do nosso século deverão ser também considerados. Se, nessa tradição, o belo é "o esplendor da forma", precisamos sempre atentar que ele não é a forma, mas sim o seu esplendor. Ao mesmo tempo, porém, vamos estudar essas concepções que impregnaram a nossa cultura sob o aspecto tipológico e semântico, pois somente assim poderemos entender muitas de suas expressões. Com a menção do aspecto pragmático da Estética, mostramos a atenção que vamos dedicar às correntes utilitaristas norte-americanas. O que não vamos fazer será uma Estética através da análise estilística de obras, pois isso deveria ser feito na disciplina História das Artes e Estruturação Musical.
Segunda parte da aula inaugural do curso de Estética como disciplina da Licenciatura em Educação Artística de natureza polivalente da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo em 1972. Publicado em BrasilEuropa & Musicologia, ed. H. Hülskath, Köln: ISMPS e.V. 1999, 17-24. ©Todos os direitos reservados
» zurück: Materialien